A Enxurrada

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Prólogo

Do alto da sacada, João Manoel e seu filho Joel estão vendo, apavorados, a enxurrada descendo pelo que poderia ser o antigo leito da cachoeira, salpicado de pedras brancas como um colar do céu, levando de roldão parte das casas dos empregados e de famílias de agregados.

– É o fim – disse João Manoel. – Para mim, esta fazenda se acabou.

– Por quê, pai? A fazenda já enfrentou outros danos causados pela natureza e se reergueu com mais força do que antes. Você chegou de viagem, como disse ao partir, para um grande passeio, e chega aqui tão desanimado, por quê?

– Outros tempos, filho. Seu avô possuía duas senzalas repletas de escravos, tinha gente para obedecer e trabalhar, mesmo sem terem visitado o tronco, que permanecia no terreiro como um aviso de que a obediência era o que os garantia ficarem livre dele. Hoje, não temos escravos.

– Pai, nesta fazenda vivem inúmeras famílias que dependem dela, gente com disposição para o trabalho. Pessoas que aqui nasceram e aqui cresceram.

– Mas vai faltar comando para um trabalho que só verá resultados depois de um ano, eu não tenho mais a força necessária para continuar na administração. Na verdade, nem ânimo.

– Está declarando que não confia em mim? E com menos de cinquenta anos se considera velho? Com esse porte de homem saudável que todos admiramos? Já observou a beleza de nosso gado?

– Não gostaria de falar nesse assunto.

– Fale, meu pai! Solte as suas mágoas, as suas desconfianças, a sua vergonha, o seu desalento. Aproveite este momento em que a natureza mostra a sua força e descarrega as suas queixas, se é que as tem.

– Aceitei você como é para não criar mais um motivo de desespero à sua mãe. Hoje, sou agradecido por seu cuidado, sua discrição, mesmo com os versos que publica no jornal, mas não posso negar que não queria um filho poeta, músico e homossexual. Para pagar os meus pecados me basta Zenoel com suas excentricidades, para não dizer o pior.

– Para não dizer que Zenoel é esquizofrênico, não é isso? O que importa falar nisso mais uma vez? Há muito tempo está claro que você o detesta e não diz a razão. Será por ser fraco do juízo?

– Seja. Devo estar sendo castigado por todos os pecados dos meus antecedentes, o que ainda hoje não quero acreditar.

– Uma vez que foi claro em relação a mim, posso responder. Não me envergonho das poesias que faço, embora não me considere poeta; não me envergonho de gostar de música, mesmo não sendo um músico de escol; por último, dou-lhe minha palavra que não sou homossexual, apesar de aceitá-los como gente igual a mim ou a qualquer outra pessoa. Admiro-o como meu pai, mas estranho a sua anunciada fraqueza. Como mencionei, não condiz com o seu porte de homem forte.

– Nega a sua condição de homossexual, mas até hoje não me deu uma prova de masculinidade.

– O que seria essa prova? Uma relação amorosa na sua frente, com uma das filhas de nossos agregados? Manter uma amante, como faz Zenoel?

– Olha a falta de respeito! Ainda não lhe dei esse direito. Zenoel não mantém a amante, ela é mantida pela fazenda, mas é uma das coisas das quais discordo, e sua mãe não me dá apoio.

– Não entendo quando fala em falta de respeito. Acaba de chegar do seu giro pelas fazendas e cidades onde diz que há rodeios, e nem me deu um cumprimento por haver terminado o meu curso de agronomia, e o terminei brilhantemente. Nesses dois meses que andou a passeio, Zenoel fez a exposição dos quadros que pintou e foi aplaudido e admirado. Vendeu-os todos e bem vendidos. Noêmia, minha noiva, esteve nesta fazenda onde combinamos residir.

– Sua noiva?

– Sim, minha noiva. Doutora em veterinária, que pretende viver nesta fazenda e ter consultório na cidade.

– Nada me falaram. Deveriam! Ainda sou o senhor desta fazenda.

– Você chegou já debaixo da chuva torrencial, no justo momento em que a cachoeira se dividiu em dois leitos e está fazendo os estragos que vemos. Ainda não entrou em casa. Minha mãe está na frente do oratório, com duas velas acesas naqueles castiçais de prata. Reza conforme a sua fé. Zenoel já fotografou a enxurrada para fazer uma pintura que a exprima, conforme a sua visão, e se não foi ajoelhar-se ao lado de mamãe para rezar junto com ela, é pelo medo dela expulsá-lo, como já tem acontecido.

João Manoel ouviu, mas não respondeu. Continuou de cara fechada, como se seu pensamento estivesse longe.

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