UM
Domingo
Ensolarado mas com Cheiro de Desgraça
Foi
num domingo ensolarado da primavera de 39 que Abel quase matou Elifaz.
Se o crime se tivesse consumado, o fato teria dado um nó na cabeça
dos exegetas-cachaceiros. Pelo Antigo Testamento, lá no início
dos tempos, Abel foi morto por Caim, seu irmão. Por inveja deste:
Abel era o preferido do Senhor. Muitas gerações depois
- também segundo as Sagradas Escrituras - Elifaz, filho de Esaú,
tentou matar Jacó, seu tio. Por vingança: Jacó
tinha roubado de seu pai - Esaú - a bênção
paterna. Na nossa família, uma senhora barafunda: Abel, por pouco,
não matou Elifaz, seu irmão. Aparentemente, por questões
ideológicas. Aparentemente, repito.
Antes
que me esqueça: Abel e Elifaz eram irmãos do meu pai,
portanto, meus tios.
O entrevero aconteceu na nossa casa, pouco antes do meu nascimento.
Foi num almoço de domingo. Naquele dia, havia muitas coisas para
serem comemoradas. Fazia um ano que Anna e José haviam se casado;
tinham acabado de alugar uma espaçosa casa no Grajaú e
a família de minha mãe - os "carcamanos" - chegara
de Minas para morar conosco. Posso dizer "conosco" porque
nesse dia eu já estava na barriga de Anna.
Era um daqueles almoços que minha mãe preparou durante
toda a sua vida: comida farta e variada. E - contra a sua vontade porque
fora do seu controle - com muita cerveja e pinga. Como sempre, a comilança
começava às onze da manhã e terminava de noitinha,
com os homens dormindo pelos cantos da casa e as mulheres, na cozinha,
lavando e enxugando a louça.
Estavam lá, nesse dia, representantes dos dois lados da família.
Recém-chegados de Minas, de mala e cuia, os "carcamanos"
em peso: a bisa Silvana, meu avós Vittorio e Francesca, e seus
filhos Apolônio, Bella, Bianca. Estavam também lá,
na condição de convidados especiais, os filhos de tio
Renzo, primos de minha mãe. Os "hebreus" presentes
eram poucos: apenas tio Abel e a mulher - Noêmia - e tio Elifaz,
esse recém-chegado da Espanha, onde lutara na guerra civil ao
lado dos republicanos. O resto da "judeuzada" ainda morava
em Minas. Meu pai convidara amigos do trabalho e alguns vizinhos.
Coisas para serem comemoradas não faltavam, mas o clima não
era bom. E uma das razões da tensão era a presença
de tio Abel. Habitualmente desagradável, nesse dia tinha mais
motivos para superar-se: morria de inveja da casa que meus pais alugaram.
Não podia suportar ver seu irmão-caçula - e bem
mais novo - morando numa casa melhor do que a dele.
- O José vai ter que vender muita máquina de costura pra
agüentar o aluguel desse palácio - dizia em voz alta. -
Vai ficar com a mão inchada de tanto bater em portas - referia-se,
com menosprezo, ao ofício do irmão, então um aprendiz
de vendedor da Singer.
- Aproveite, gente, este almoço. Pelo jeito, será o último.
Com o aluguel que José vai ter que pagar, não vai sobrar
nada pra comprar comida. Esta sopa vai acabar!
Enquanto José achava graça, Anna ficava pra morrer. Sacava
a inveja do cunhado. Na cozinha, coordenando os preparativos do rega-bofe,
bufava. Tia Noêmia tentava desqualificar a atitude inconveniente
do marido, botando panos quentes. Percebendo que Anna estava chateada,
dizia pra concunhada:
- Liga não, Anna. Abel não pode beber. Ele é fraco
pra bebida.
Todo mundo sabia - inclusive sua mulher - que não era bebida
que fazia ele ficar assim. Ele era assim. De berço. Podia até
ser "fraco pra bebida". Mas era ainda mais fraco de caráter.
Como sempre, o almoço seria servido fora da casa, no quintal,
numa área coberta defronte do galpão onde dois anos mais
tarde seria erguida a "capela sistina". Ali estavam todos
os homens, bebendo e beliscando o antepasto.
Hitler acabara de invadir a Polônia e obviamente o assunto entre
eles, já cheios de cerveja e cachaça, era a guerra iminente.
Apolônio, embora legítimo "carcamano", era antifascista
e já começava a se desencantar com Getúlio Vargas,
sobretudo pelas simpatias explícitas do ditador pelos seus correspondentes
na Europa. Criticava a invasão. Dizia que, bem não acabou
uma guerra, na certa, já, já teríamos outra. Um
vizinho e um amigo de trabalho do meu pai estavam do seu lado na discussão.
Elifaz - que todo mundo sabia ser comunista - se fosse do seu feitio
participar desse tipo de conversa, claro, estaria também desse
lado. Mas apenas ouvia, atento, a evolução do debate.
Em oposição, isto é, defendendo Hitler e Mussolini,
obviamente, Abel e o primo de minha mãe, Sandro. Digo "obviamente"
porque Abel era integralista militante, daqueles de andar com braçadeira
do partido - de fundo branco com a letra grega sigma em preto - e de
saudar as pessoas com um ridículo "anauê". E
primo Sandro, sendo italiano de nascimento, tinha planos de voltar para
a Itália e alistar-se no exército de Mussolini. Aliás,
toda a família de tio Renzo, de cabo a rabo, orgulhava-se de
ser fascista.
Abel era daqueles debatedores que gostavam de falar alto. Achava que,
como só dizia coisas importantes, todo mundo deveria ouvi-lo
em silêncio. Como bom fascista, era um provocador nato. E naquele
dia, por alguma razão, estabeleceu que o seu alvo era Elifaz,
seu irmão comunista com quem sempre se deu muito mal. Abel começou
a mandar mensagens claras para o irmão:
- Primeiro, Hitler vai dominar a Europa. Depois, vamos acabar com a
raça do Stalin - disse, provocando.
Elifaz conversava com um vizinho. Sabia que a provocação
era para ele, mas fingiu não ouvir. Aliás, era trotskista,
estava pouco ligando para o Stalin. Pensando bem, Hitler até
estaria fazendo um favor se acabasse mesmo com a raça do Stalin.
Porém mantinha sua postura de não discutir política
em casa com ninguém, muito menos com o irmão. Mas Abel
era um profissional da provocação. Não iria desistir
fácil e continuou lançando torpedos na direção
de Elifaz. Primo Sandro botava lenha na fogueira.
Tio Apolônio - que mais tarde me contou esse incidente - não
se lembrava qual foi a provocação que tirou Elifaz do
sério. Contou que, quando ninguém esperava, Elifaz voou
para cima do tio Abel e deu-lhe um murro no meio da cara.
- O soco deve ter feito Abel lembrar-se do coice que levou no meio dos
cornos quando moleque - Apolônio referia-se a um coice aplicado
em Abel por uma égua da fazenda quando esse tentava penetrá-la
por trás. Escorregou do barranco, a égua se assustou e
mandou-lhe um par de coices nas fuças que o marcou pra sempre.
Com o soco de Elifaz, Abel caiu por cima das cadeiras como naquelas
cenas de briga de bar nos filmes de faroeste. No chão, grogue,
levou tempo para se dar conta da agressão. Entre o surpreso e
o humilhado, supercílio aberto, sangue já escorrendo pelo
rosto, logo decidiu que não podia deixar passar barato a agressão
do irmão mais novo que ele oito anos e em quem tantas surras
aplicara quando criança. Aquele fedelho iria pagar caro por aquilo.
E diante dos olhos de todos - parentes, amigos da casa, vizinhos - levantou-se
e dirigiu-se a passos cambaleantes - mas largos - para dentro de casa.
Tão rápido foi tudo - o vôo do tio Elifaz, o soco
disparado, a queda espetacular de Abel por sobre as cadeiras, a sua
recuperação em segundos - que ninguém teve tempo
de pensar no que fazer naquele momento. E enquanto se imaginava que,
antes de pensar num revide, ele fora se lavar e olhar no espelho o estrago
que o murro fizera em sua cara, Abel volta, rosto sangrando, camisa
toda cagada de sangue e com um facão de cozinha na mão.
Um quadro que Caravaggio gostaria de ter pintado.
- Te mato, comunista filho da puta!
E partiu célere em direção ao irmão.
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