Eu, Eu Mesmo e... Deus?
ou
Longe do Paraíso


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A Tragédia – Último Ato

Há algum tempo, numa segunda-feira, durante o almoço, eu, com alguns colegas de trabalho – talvez fôssemos quatro – ouvi uma história que um deles testemunhara no fim de semana, sábado para domingo, em uma capela de um cemitério cristão aqui na cidade.

Contou-nos que morrera uma tia idosa de sua esposa e que ele e ela passaram a noite cumprindo o ritual triste de velar o corpo da tia para, ao final do velório, seguir o cortejo fúnebre para o sepultamento.

Ele nos disse que o local da capela, amplo, mas fechado, com poucas janelas altas, de difícil ventilação, abrigava não somente o esquife de sua tia, com familiares e amigos ao derredor, mas também, no mesmo recinto, o esquife de uma criança. O corpo da criança estava cercado de poucas pessoas, ou apáticas, sem vida, ou em absoluto desespero.

O estado emocional de avós e pais – meu colega os conheceu mais tarde, na mesma noite – era, segundo ele, de dilacerar a alma. Em suas palavras, a dor daquela gente era palpável, dura, mortal. Ele, ainda muito abalado, disse que nunca presenciara nada semelhante.

Meu amigo, como fazia sempre, mas agora mais do que nunca, reproduziu de forma teatral e dramática o que ouvira do avô naquele triste ambiente.

“Perdi meu neto e perderei meu filho; minha família está se acabando. Um manto negro, vindo das sombras, está sufocando no desespero todos nós. Olhamos e buscamos uma saída em toda parte; discutimos e nos acusamos, ao mesmo tempo tentamos nos consolar, choramos, choramos muito. Imploramos aos céus, aos santos, a Deus.”

“Eu perdi meu neto, morto pelo próprio pai, pelo meu filho. Na presença da mãe, uma tragédia...”

“É muito difícil, muito difícil mesmo. Nada atenua a minha dor, minha perda, meu ódio, minha revolta. O carro, em marcha a ré, meu neto de seis anos! Apenas seis anos! Meu filho não viu; minha nora desatenta... A tragédia, e essa dor. Estamos todos morrendo, somente lágrimas e mais lágrimas, esperando, implorando por vezes que Deus se apiede de nós e nos mate também, de uma vez.”

“Um acidente, um trágico e terrível acidente”, tentou acalmá-lo o meu amigo.

“Não, não, não foi um acidente. Por que um acidente? Isso é um absurdo! Então, um pequeno anjo, inocente, seis poucos anos e imensamente amado, sem que tivesse quaisquer ações realizadas, boas ou ruins, é derrubado pela morte, por acidente? É essa a explicação? Pelo amor de Deus! Não aceito! Eu preciso desesperadamente de uma explicação.”

Todos nós, na mesa, ficamos, naturalmente, muitíssimo entristecidos e abalados. O colega que presenciara aquilo tudo estava muito deprimido. Eu pessoalmente, depois, não conseguia me livrar daquela lembrança. Lembrava dos meus próprios filhos e sentia profundamente, talvez pela primeira vez, a dor do outro. Eu me lembrava daquele avô, daquela avó, daqueles pais, desconhecidos, e sentia um pouco da dor deles, o suficiente para me levar, dali em diante, a um estado permanente de angústia e de quase choro.

Naquela noite, comecei este livro. Por impulso, pela enorme tristeza, pela dor daqueles seres, escrevi, compulsivamente, por várias horas seguidas, sobre a dor deles, a minha dor, a solidão de nós todos, o desamparo, a morte, sobre Deus e sobre a fé. Algumas páginas sobre muitas coisas.

Mais de duas da manhã, três talvez, eu dormi, amargurado, um sono conturbado. Às seis eu levantei, quase um zumbi, mas com uma agenda de trabalho complicada, com compromissos seguidos por todo o dia.

Na segunda noite, mais calmo, reli meus escritos rascunhados e gostei. Senti que havia escrito com o coração. Estava tudo lá, no papel. Eu conseguira a catarse, eu com o papel. Estava mais calmo. Faltava conteúdo, entretanto. Pareci a mim mesmo uma criança sincera, mas, como homem maduro, eu percebi que não sabia nada. Constatei naquele instante que meus conhecimentos e ideias sobre todas as questões que realmente importam para o ser humano eram poucas, apequenadas, confusas e atrapalhadas. Resolvi, então, estudar mais, trabalhar mais nesses assuntos e escrever sobre essa viagem pessoal.

Mas por que exatamente esse acontecimento específico me tocou tanto e tão dramaticamente? A mim, que já vivenciara mortes na família, entre os amigos, e que sempre me vira como um homem sensível às dores do mundo? Sinceramente, não sei. Há uma expressão muito antiga que diz “quando o discípulo está pronto, o mestre lhe aparece”. Creio que, por similaridade, naquele momento eu estava pronto para de fato sofrer a dor daquela família e não simplesmente para “pensar”
em sentir a dor deles. E essa foi à dor primordial que me impulsionou para o trabalho que resultou nessas linhas.