Você Tem Obrigação de Ser Feliz


Início:

1

Era a primeira vez que comparecia a uma reunião sobre aquele pequeno planeta. Normalmente ele era indicado para setores em estágios de evolução mais adiantados. E ele não estava conseguindo entender quase nada. Por que todos estavam se comunicando daquela maneira? Por mais que tentasse perguntar aos participantes o que estava acontecendo, ninguém parecia entendê-lo. Estavam utilizando uma freqüência pouco usual, que ele ainda não tinha identificado com precisão, e o pouco do que entendia estava lhe parecendo tão confuso que não havia meio de captar o que estava sendo discutido. Os participantes da reunião pareciam crianças brincando, e ele começou a sentir o que, na linguagem que estavam utilizando, poderia ser chamado de nervosismo. Já estava quase desistindo de entender o que acontecia, quando pensou “ouvir” algo que certamente era dirigido a ele:

– Reduza a freqüência para 5,32* e o conteúdo para 0,28*.

– Por quê? – perguntou, já com as especificações solicitadas. E então pôde entender completamente a resposta.

– Porque estamos conversando sobre a Terra.

– Sobre o quê?

–Terra é como os seres que atualmente estão na zona µ484¶ chamam o seu planeta.

– Planeta?

– É o nome que eles dão àquele tipo de setor.

– Mas por que todos estão “falando” desta maneira? Parece-me que levaremos muito mais tempo para nos comunicarmos com esta linguagem quase sem conceitos.

– É, mas quando algo for decidido, poderá ser realizado na Terra. Antigamente não fazíamos isto, nos comunicávamos normalmente e era comum optarmos por alguma coisa impossível de ser implementada naquele setor.

– Eles estão tão atrasados assim?

– Pior do que isso. Estão atrasados e nem sabem que estão. As condições ambientais ali são tais que quase todos que lá chegam se esquecem de tudo e passam a pensar que estão sozinhos, que nós não existimos e pior, que não existe a Unidade.

– Mas eu tenho informações de que muitos seres, mesmo quando residentes lá, tiveram muito sucesso em sua missão.

– Sim, existem casos isolados. Mas eles não conseguem enxergar que estes seres não são especiais, mas iguais aos outros. Eles, comumente, passam a cultuar estes seres, chegando até, em alguns casos, a inventar o que eles chamam de religião. Atualmente, assim que notamos algum ser residente por lá mais “acordado”, optamos por enviar estímulos contínuos para que este permaneça quase que incógnito, tentando levar o conhecimento apenas a poucas pessoas, que procederão do mesmo modo.

– Mas aí a disseminação da informação se dá de forma muito lenta.

– Nem tanto. Estamos utilizando uma outra forma também. Assim que percebemos um ser que conseguiu se lembrar daquilo que deveria, enviamos estímulos muito fortes do que eles chamam de criatividade e o ser elabora histórias de ficção meio mirabolantes que às vezes até viram filmes e que costumam fazer muita gente pensar.

– O que é um filme?

– É uma espécie de história interpretada e registrada em algum meio, de tal forma que possa ser exibida para outras pessoas sem que os atores tenham que repetir a interpretação. Os habitantes daquele planeta valorizam muito este tipo de engenho e costumam assistir aos filmes com muita dedicação.

– Não estou certo de estar entendendo muita coisa...

– Você nunca foi lá?

– Receio que não. Somente agora fui alocado, não sei nem bem por quê.

– Boa sorte.

– É, acho que vou precisar.

Neste mesmo momento a presença de
foi solicitada no centro de decisões e lhe foi comunicada a sua próxima missão. Como lhe haviam adiantado, esta seria na Terra, à qual chegaria já em idade adulta, pois uma substituição era necessária. Um outro setor estava precisando urgentemente de um ser alocado à Terra, mas sua missão ainda não havia sido concluída, apesar de sua personalidade estar perfeitamente ajustada. Não seria justo com o planeta simplesmente retirar o ser dali. Então ele o substituiria. Este artifício não era muito freqüentemente utilizado, pois para que o projeto, como um todo, tivesse sucesso, as condições de vida em cada um dos setores sob a jurisdição daquele grupo deveriam ser as mais naturais e espontâneas possíveis. Mas a Terra, pobre Terra, estava precisando de alguma espécie de ajuda. Explicaram que não estavam mais sabendo o que dizer ao “Gerente Geral”, que lhes vinha cobrando resultados sobre a zona µ484¶ com cada vez maior freqüência. E eles começavam a sentir-se impotentes para impulsionar o desenvolvimento daquele planeta. Quando isso acontecia, ou seja, quando um setor mostrava mais dificuldade em se conectar com o todo, era comum o “Uno” passar a “preocupar-se” mais com esse setor do que com os outros mais desenvolvidos. Era absolutamente necessário que a Terra acelerasse seu desenvolvimento, e rápido. As notícias sobre os fracassos cada vez mais freqüentes das missões naquele setor estavam se espalhando, e uma onda de pessimismo já estava surgindo entre os seres. Quase ninguém mais queria ser alocado à Terra, e isto não podia continuar acontecendo.

Quando a missão foi descrita a a, pareceu-lhe incrivelmente fácil. Mas tão logo este pensamento veio-lhe à mente, uma chuva de protestos chegou até ele, e desta vez em várias freqüências, não só naquela que simulava a linguagem da Terra mas em todas que comumente usavam. A síntese de todas as mensagens era de que nada na Terra, afinal, configurava-se fácil. Quase todos que por ali passavam esqueciam-se de tudo, ou quase tudo, e passavam a desfrutar dos prazeres que o planeta proporcionava.

Talvez a variedade de espécimes ali existentes, ou a beleza do lugar, ocasionasse aquele esquecimento. Ou, e recentemente esta teoria já contava com vários adeptos, o fato de haver ali dois tipos de corpos em cada um dos espécimes fosse afinal a causa de tudo. Diferentemente do que acontecia em outros setores, na Terra havia machos e fêmeas, e devido a isso havia o sexo, o que tinha originado muitos dos problemas ali existentes. Mas todos os seres que por lá passaram garantiam ser o sexo uma coisa muito positiva e que, em vez de abolido na Terra, como já pensavam alguns, deveria ser disseminado em outros setores. Quando perguntaram ao “Sutil”, o mais silencioso dos conselheiros, sobre o que ele achava, posto que não haviam conseguido ainda um consenso sobre aquele assunto, “Ele” limitou-se a “sorrir”.

Garantiram a a que lhe seria possível a realização de contatos permanentemente, desde que, é claro, não se esquecesse do que estava fazendo na Terra.

saiu dali meio tonto, mas não teve tempo de curtir muito a sua confusão, pois logo entrou em uma espécie de treinamento intensivo e rapidamente, já agora com o nome de Pedro, viu-se em uma cama de hospital, recém-operado do coração. Assim que tomou consciência, sua mente foi tomada por uma onda assustadora de pensamentos simultâneos, sentimentos conflitantes, medo e dor. Pasmo, sentiu vontade de gritar, de fugir, de voltar. Será isso a mente humana?, pensou horrorizado. Respirou fundo, procurando observar o ar entrando e saindo de seu corpo, tentou se acalmar, utilizando inclusive a sua memória terrestre recém-adquirida. Percebeu com alívio que poderia contar com várias técnicas armazenadas naquela pobre mente quase ensandecida. Pensou em algumas cores, aprofundou a respiração, acalmou-se. Ao focalizar a visão, deparou-se com uma pessoa que deveria ser o que eles chamavam de médico. Olhava para ele de uma forma tão impessoal que não lhe transmitia absolutamente nada. Seu recente treinamento o fez ver que era aquele o nível de comunicação do planeta, ou por outra, o nível de não-comunicação. Tinham- lhe explicado que a grande maioria dos seres, quando chegava àquele setor, parecia esquecer-se de quase todas as formas de conexão, passando a utilizar apenas a linguagem falada em seus contatos.

– Como você está se sentindo?

– Bem – ele falou, pensando ter feito um gracejo, pois como ele poderia estar se sentindo bem, com o peito todo costurado e uns fios amarrados em seu braço?
Mas o homem não riu. Ao contrário, pareceu-lhe acreditar piamente em sua resposta, passando à próxima pergunta sem pestanejar.

– Alguma dor?
Mais uma pergunta absurda, mas desta vez resolveu responder seriamente, pois ao que parecia o senso de humor não era ali muito utilizado.

– Todas.

– Como?

– Estou sentido todas as dores. Todas as dores a que tenho direito, considerando a minha situação.

– Você quer dizer que está sentindo muitas dores? Pode me explicar onde? Só assim poderei ajudá-lo.

A seriedade do homem o fez pressentir que realmente seria muito difícil viver ali. Resolveu descrever com muita gravidade os seus sintomas e o médico aplicou alguma coisa naqueles tubos presos por um fio ao seu braço, e saiu.
Pedro ainda permaneceu acordado por algum tempo, pensando que as coisas naquele lugar estavam realmente difíceis. Rememorou sua missão, traçando mentalmente a estratégia que deveria utilizar. Quando estava em seu lugar de origem, sua função lhe parecera fácil. Agora que não contava mais com toda a sua capacidade, começava a entender os protestos calorosos de seus pares, quando apenas pensara em facilidade.

Após ter dormido por várias horas, ao abrir os olhos deparou-se com outro homem que o olhava de uma forma curiosa. Sentiu uma sensação estranha, como se uma parte de si tivesse se perdido. Lembrava de um sonho muito estranho, onde as pessoas se comunicavam de uma forma diferente, não condizente com o que havia registrado em sua memória...

– Não sei se já lhe contaram, mas durante a cirurgia você sofreu o que chamamos de morte clínica por alguns minutos. Realizamos os procedimentos de ressuscitamento e você voltou. Sinceramente, pensamos que o tínhamos perdido. Você se lembra de alguma coisa?

– Não.

Lembrava apenas daquele sonho que se passava naquele estranho lugar, mas não queria compartilhá-lo com o médico. O sonho lhe parecia muito real, mas não podia ser verdade. Sentia-se muito confuso, queria ficar sozinho.

– Mas você tem certeza? Não se lembra de um túnel, de uma luz muito forte?

– Infelizmente não me lembro de nada.

Em suas lembranças, reais ou não, não havia túneis, nem luzes muito fortes.

Contrariado, o médico, após alguns poucos exames, saiu do quarto. Pedro pensou que o interesse maior daquele que deveria zelar pela sua vida parecia ser a sua morte, mas relevou o fato. Apesar de ter despertado há pouquíssimo tempo, sentiu-se novamente sonolento. Não queria adormecer de novo sem antes entender o que estava acontecendo, mas sua luta contra o sono estava praticamente perdida, estava quase dormindo e sua mente, desistindo da luta, se acalmou. E aí, uma coisa ainda mais estranha aconteceu. Uma parte de si, que não conhecia, pareceu assumir o comando e Pedro viu-se em conexão com algo que não fazia sentido, pensando coisas absolutamente estranhas.

De:
Para:
Está tudo correndo bem, apesar de eu não ter me preparado, como deveria, para enfrentar a mente humana. Mas o meu predecessor parece ter me deixado algumas ferramentas que estão sendo de grande valia. Agradeçam a ele por mim.

Adormeceu exausto.