Prólogo
A
animação era geral. Garçons vestidos a caráter
circulavam entre as mesas; a orquestra, contratada na capital, enchia
o salão de música própria para a dança;
as moças, vestidas de branco, e os rapazes, de azul-marinho,
faziam um contraste elegante. Ainda mais quando rodopiavam na pista,
onde a parafina espalhada na véspera permitia que os pares deslizassem
como a ensaiar um voo. Raquel, em seu vestido de gase, deixava entrever
seu busto sem manchas, sua pele aveludada. Os seios, seguros por sutiãs
rendados, arfavam na excitação de uma noite feliz, memorável!
Já havia dançado com muitos rapazes e ainda tinha contradanças
marcadas que chegariam ao fim quando o baile terminasse. Era o baile
de seus quinze anos, organizado especialmente para aquela data, embora
o seu porte fosse de princesa no verdor dos dezoito anos. Dona Margarida,
sua mãe, e o doutor Fernando, seu pai, eram poucos para tantos
cumprimentos. Em Rio Turvo nunca se vira comemoração organizada
com aqueles requintes, e a afluência dos convidados era absoluta.
Sentada a uma das mesas colocadas longe da pista de dança, Alice
conversava com duas colegas. Conversa descon-traída, assim podia
se supor pelo sorriso espontâneo das três moças.
Mariana e Elza eram as amigas mais chegadas a Alice, irmã de
Raquel.
Foi Mariana quem deu a nota destoante quando comentou, dirigindo-se
a Alice:
Não me lembro da festa dos seus quinze anos, mas tenho
certeza que não teve o brilho desta.
Nem poderia respondeu Alice. Não houve comemoração.
Por quê, minha amiga? Algum contratempo impediu?
Não sei... Não foi cogitada. Papai me dispensou
da farmácia e passei dias felizes no sítio do tio Felício.
Para bem marcar aqueles dias, até cheguei a cair de um cavalo,
assustando o rapaz encarregado de me acompanhar. E não pensem
que estou dizendo tudo isso para comparar com a festa da Raquel, pois
no baile de hoje nem pensava. O certo é que minha tia Adalgisa
e meu tio Felício fizeram o máximo para que aquela semana
ficasse na minha lembrança.
Você se liga bem aos tios, hein? disse Elza, numa
pergunta que tinha o tom de afirmação.
Claro! exclamou Alice. São meus tios e meus
padrinhos. Pedro é seu único filho e eu preencho a falta
que sentem de uma filha moça, como preenchia quando era apenas
uma menina.
Por falar em Pedro! interveio Mariana. Por onde
ele anda? Não o vi no baile.
Mas está presente respondeu Alice. Passou
brilhantemente no vestibular para medicina e está numa alegria
contagiante.
Em outro canto, afastados do barulho maior, Adalgisa tinha sua atenção
presa na alegria de Alice e sobre ela comentava com o marido:
Margarida não agiu bem. Dizer para Alice, na véspera
do baile de debutante de Raquel, que ela é filha adotiva, pareceu-me
maldade. A meu ver, jamais deveria dizer.
Mesmo assim, ela não mostra sinal de tristeza, o que acho
estranho.
Você não sabe? Faz dois anos que ela vem esperando
pela revelação formal. Certa tarde, quando chegou do colégio
mais cedo, ouviu Margarida conversando com Fernando sobre a conveniência
de dar a notícia de sua adoção. Revelou-me o fato
quando você me deixou aqui e foi fazer aquela viagem em que não
pude acompanhá-lo. Disse-me, então, que havia chorado
muito, mas depois se lembrou de que se não tivesse sido adotada,
como estaria hoje? Por isso se calou e deu graças a Deus por
haver encontrado quem a adotasse. Mas é certo que a partir de
então tem procurado se ocupar fora de casa. Sua entrada como
voluntária no hospital, deixando a farmácia para desagrado
de Fernando, foi decorrência do conhecimento da sua condição
de adotiva, do que me pediu para guardar segredo.
Lembro-me, ainda comentou Felício da indecisão
de Margarida naquela manhã no orfanato. Eram duas as meninas
que atendiam aos desejos dela, e ela não sabia por qual se definir.
Finalmente, preferiu Alice, pela aparente mansidão. A outra se
mostrava chorona e irrequieta. Aquela freira fez o que podia para Margarida
ficar com a outra, contrariando o desejo de Margarida, e por isso Alice
quase perdeu a oportunidade de ser adotada. Não sabia que Alice
já estava sabendo da sua condição de adotiva. Margarida
não deveria fazer distinção entre ela e Raquel.
Dois anos guardando o segredo! Tem mostrado espírito forte, não
acha? Suportar calada um segredo dessa natureza não me parece
fácil.
...
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