INTRODUÇÃO
O
estudo da homossexualidade tem sido particularmente intenso ao longo
dos últimos 20 anos. Inicialmente dominado por antropólogos,
este campo teórico extremamente fértil tem pouco a pouco
incorporado perspectivas interdisciplinares que incluem as áreas
de história, sociologia, comunicação e psicologia,
entre outras. O renovado interesse por este tema se deve ao fato de
que a cultura homossexual no Ocidente tem sofrido mais mudanças
neste período do que em qualquer outro momento histórico,
gerando para os homossexuais uma visibilidade com a qual o mundo moderno
jamais teria sonhado. Da mesma forma, o capitalismo criou as condições
socioeconômicas e psicológicas necessárias para
a emergência da identidade homossexual moderna. Em outras palavras,
o capitalismo permitiu que os homossexuais, entre outros indivíduos
oprimidos, se sentissem livres para expressar sua identidade através
do uso criativo de produtos e serviços, o que fez com que o mercado
homossexual se transformasse em um dos pilares desta subcultura. Conseqüentemente,
o estudo do comportamento de consumo torna-se relevante, devido à
importância que ele assume na construção da subjetividade
do indivíduo e na sua inclusão dentro do sistema social
mais amplo.
Foi a partir de meados da década de 90 que se começou
a falar também no surgimento de um mercado homossexual, cujo
público-alvo teria características especiais. A grande
maioria dos estudos que tratam deste assunto se concentra nos Estados
Unidos, tendo o Brasil voltado sua atenção para este fenômeno
apenas a partir do ano 2000. Assim, não existem até o
momento, tanto quanto saibamos, estudos nacionais de grande porte sobre
o comportamento de consumo do homossexual brasileiro. Quanto às
pesquisas norte-americanas, estas apontam para dois fatos de extrema
importância. Em primeiro lugar, comportamento sexual (isto é,
ter práticas eróticas ou afetivas homossexuais) não
é o mesmo que identidade sexual (definir-se como homossexual).
Em segundo, estas mesmas pesquisas descobriram que é a identidade
sexual que influencia o comportamento de consumo, ambos estando intimamente
relacionados.
Assim, levando em consideração as discussões acima,
este livro tem por objetivo investigar questões ligadas à
homossexualidade (preconceito sexual, subcultura homossexual e identidade
gay) tomadas contra um pano de fundo constituído pelo comportamento
de consumo homossexual no Rio de Janeiro. No que se refere à
teoria, lançaremos mão de perspectivas interdisciplinares,
unindo conhecimentos da psicologia social com alguns conceitos oriundos
da comunicação, sociologia e antropologia.
Antes de dar início a este livro, no entanto, torna-se necessário
definir alguns dos conceitos que nortearão o trabalho. Em primeiro
lugar, não visamos discutir as causas da homossexualidade: esta
orientação sexual será abordada enquanto fato consumado,
que não precisa de justificação biológica,
psicológica ou social. Em outras palavras, tal como sugerido
por Trevisan (2000), pretendemos nos ater às vivências
pessoais como dados inegáveis da realidade. Desta forma, o termo
homossexual será utilizado aqui como significativo de homens
ou mulheres cuja orientação sexual e afetiva principal
é para com pessoas de seu mesmo sexo biológico.
A definição acima nos leva, por sua vez, a fazer uma distinção
entre os diversos componentes (socialmente construídos) pelos
quais classificamos a sexualidade humana: sexo biológico (ser
macho, fêmea ou intersexual anátomo-fisiologicamente),
orientação sexual (atração por pessoas do
sexo oposto ou do mesmo sexo biológico, isto é, ser heterossexual,
bissexual ou homossexual), identidade de gênero (ser mulher ou
homem) e papel de gênero (comportar-se de forma feminina, masculina
ou andrógina). Outros autores apontam ainda para o papel sexual,
ou seja, o modo pelo qual o indivíduo se insere na relação
sexual (por exemplo, de forma ativa ou passiva). Com relação
ao papel de gênero, este pode ser definido como uma série
de características, comportamentos e interesses definidos por
uma sociedade ou cultura como sendo apropriados para membros de cada
sexo biológico. O papel de gênero que predomina para o
homem é de trabalhador, provedor, chefe da família e líder,
atividades que requerem traços de personalidade considerados
masculinos, tais como assertividade, confiança, racionalidade,
seriedade, força, coragem e independência. A mulher deveria
se responsabilizar pelo cuidado com os filhos, a casa e os relacionamentos
familiares, pois tem traços femininos como dependência,
cooperação, afetividade, sensibilidade e lealdade. Em
outras palavras, na nossa cultura a masculinidade é construída
em contraposição à feminilidade.
No
caso da homossexualidade, a confusão entre papel de gênero
e orientação sexual é grande: estereótipos
freqüentemente mostram os homossexuais como indivíduos que
se sentem desconfortáveis com suas identidades de gênero,
querendo modificar seu sexo biológico. Como veremos adiante,
imagens culturais do gay efeminado são comuns, e muitos acreditam
também que em seus relacionamentos um homossexual faz o papel
de esposa enquanto o outro atua como marido. De acordo com alguns autores,
estes estereótipos provêm da premissa errônea de
que os componentes da sexualidade humana são inseparáveis,
e que se um indivíduo difere da norma em um destes componentes,
deve diferir também em todos os outros. No entanto, a maioria
dos homossexuais não está confusa no que se refere à
sua identidade de gênero: tem certeza de serem homens/mulheres,
e poucos adotam um comportamento efeminado/masculinizado. Neste sentido,
pode-se dizer que a tolerância para com a homossexualidade
seria proveniente de uma mudança de representação
dos sexos, não apenas de suas funções, de seus
papéis a nível profissional e familiar, mas de suas imagens
simbólicas. (Ariès, 1985: 80) Desta forma, assumir
a homossexualidade, e a própria existência de uma identidade
e subcultura gays, questiona os rígidos papeis sexuais e a hegemonia
da masculinidade.
Devemos frisar por último que este livro se refere exclusivamente
a homossexuais do sexo masculino, não pretendendo em momento
algum investigar o universo das lésbicas. Estas foram excluídas
deste trabalho porque sua vivência está perpassada por
questões distintas, principalmente relacionadas à identidade
de gênero, e a compreensão do preconceito direcionado a
elas, juntamente com sua identidade, subcultura e comportamento de consumo,
precisam ser abordados em um estudo separado. Se as fontes bibliográficas
sobre a homossexualidade masculina são relativamente escassas,
fontes sobre lésbicas são ainda mais raras. Os universos
gay e lésbico se interseccionam às vezes (em algumas casas
noturnas ou círculos sociais, por exemplo), mas permanecem bastante
autônomos. Além disso, a relativa invisibilidade das lésbicas,
em comparação com os gays, requer diferentes estratégias
de pesquisa. Por motivos similares, também não abordaremos
os subgrupos dos bissexuais e transgêneros (definidos aqui como
indivíduos que adotam identidades e papéis de gênero
opostos aos culturalmente atribuídos a seu sexo biológico),
visto que suas identidades e inserção social variam consideravelmente
em relação aos homossexuais masculinos assumidos.
Com relação aos capítulos do livro, faz-se importante
ressaltar que após a exposição do material teórico
discutiremos os resultados de um estudo de campo realizado com homossexuais
masculinos moradores da Zona Sul carioca. Desta forma, compreendendo
a homossexualidade moderna como uma forma de subjetividade historicamente
circunscrita em seu modo de expressão e reconhecimento, o primeiro
capítulo, Construção Histórica da Categoria
Homossexual, visa esboçar o surgimento do conceito
de homossexual no imaginário social do mundo ocidental contemporâneo,
desde meados do século XVIII. O segundo capítulo, Homossexualidade
Masculina no Rio de Janeiro no Século XX, tem por objetivo fazer
uma breve revisão histórica da homossexualidade no Brasil,
focalizando sobretudo a cidade do Rio de Janeiro, por ser o local que
escolhemos para realizar o estudo de campo. Como este livro se concentra
na categoria de homossexual moderno, deixaremos de lado a análise
da homossexualidade no Brasil do descobrimento e da colônia, renunciando
igualmente ao estudo do comportamento homossexual presente nas sociedades
indígenas, pois estes períodos históricos e contextos
culturais distintos precisam ser abordados separadamente.
Entendendo o preconceito como um fator altamente relevante para a constituição
da identidade homossexual, o terceiro capítulo pretende inicialmente
fazer uma revisão dos conceitos de preconceito, estereótipo,
discriminação e estigma, tal como têm sido estudados
tradicionalmente pela psicologia social. Posteriormente, estas definições
serão aplicadas ao caso específico da homossexualidade,
terminando o capítulo com uma breve análise da representação
dos homossexuais na mídia. O quarto e o quinto capítulo,
Movimento e Identidade Homossexual, estão intimamente ligados
entre si. Neles abordaremos a influência do movimento homossexual
e de seus ganhos políticos na constituição de uma
identidade específica, analisando com maiores detalhes o processo
de assunção da homossexualidade. O sexto capítulo
enfatizará a Subcultura Homossexual existente no Rio de Janeiro
desde o início do século XX e suas características
particulares, tais como subgrupos, espaços de socialização,
linguagem própria e códigos de aparência externa.
O sétimo capítulo, Comportamento de Consumo, tem por objetivo
estudar o mercado homossexual, tanto nos Estados Unidos como no Brasil,
seus reflexos na imprensa e na publicidade, assim como as críticas
com relação a este tipo particular de consumo. No último
capítulo discutiremos os resultados obtidos durante a pesquisa
de campo para finalmente, na conclusão, tecer algumas considerações
sobre a relação entre identidade, preconceito, subcultura
homossexual e economia de mercado, além de apresentar sugestões
para publicitários que desejem atingir o consumidor homossexual.
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