A Igreja Agnóstica


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Um forte antigo fora adaptado para moradia de uma congregação religiosa, ao lado de um casarão onde morava uma súcia de ateus, promotores de orgias turbulentas. Mal anoitecera, e o casarão já fremia de gritos bêbados:

– Um brinde aos carolas!

Um bloco de ateus embriagados entrou no terraço, com garrafas e instrumentos musicais, numa fanfarra frenética.

– Parem com isso! – exclamou o mentor Pereira.

– Praga de gafanhotos – disse Lúcio.

– Mas nenhum louva-a-deus – retrucou o bandleader.

– Um brinde a Lúcio!

– Saúde! – exclamou Andreiev, e ao agitar o gelo no copo quase caiu do peitoril da janela onde estava sentado.

– Jairo, desça – ordenou o guardião Paulo, depois de subir a escada encostada no muro.

– Quarenta por cento dos holandeses são ateus!

– A Holanda é uma restinga – exclamou Lúcio. – Pouco maior que o mapa da China.

– Os holandeses deveriam acarpetá-la – disse Pereira.

– A Índia e os países africanos são cem por cento crentes.

– Mas a Holanda chega lá – exclamou Andreiev, desfraldando a bandeira do Ajax.

O muro que separava o forte crente do casarão ateu estavacoalhado de agnósticos que assistiam ao debate, e a cada arremate um gorducho levantava-se para anunciar o placar. Para surpresa geral, o guardião Paulo despontou na grimpa do muro.

Paulo era um catarinense cinqüentão, calmo, mas respeitado por ateus e crentes; pelos agnósticos, então, era temido. Nascido ao pé da Serra do Espigão, numa família de avicultores bem-sucedidos, a mãe, uma suíça de Biel, o queria pastor evangélico, mas o marido havia conseguido erradicar um surto de pulorose que dizimara a criação, e em reconhecimento pela graça alcançada, decidira que o filho seria padre. Para contemporizar, o menino ia à missa e freqüentava o culto protestante, mas aos quinze anos, percebendo que os pais não se decidiam, optara pelo agnosticismo. Assim, por pouco o gorducho não despencou ao ouvir a voz do guardião:

– Jairo, desça!

– Religião é uma doença que se contrai na infância – disse Andreiev. – É o sarampo da humanidade.

– Pobre coitado... – sussurrou Lúcio.

E Lúcio tinha razão. O engenheiro-chefe Vítor Andreiev era um materialista solitário que casara com a própria irmã e por castigo tiveram um sobrinho. Nascido em Moscou, bem cedo o matricularam no jardim Esquilinho Marx, onde, aos cinco anos, já sabia blasfemar em três idiomas. Mas a revolução mudaria sua vida: aos dezoito anos ingressa no Partido, improvisa um discurso na escadaria do Kremlin, ganha a simpatia de Stalin e recebe uma bolsa de estudos na nuca.

– Mais alto, maestro! – gritou Artur, o ateu que mais bebia.

– Tenho pena de suas almas – tornou Pereira.

José Pereira era teólogo, formado pela Faculdade de Teologia do Porto, onde se especializara em cosmogonia gnóstica e receitas de bacalhau. Começara estudando deuses menores, como Mercúrio e Vênus (que segundo ele não passavam de um metro e sessenta), mas aos vinte anos já sabia o número dos sapatos de Zeus e que apito afinal tocava Hermafrodito.
Jairo mais uma penca de agnósticos obedeceram e seguiram equilibrando-se sobre o muro, que levava ao Largo da Concórdia, onde finalmente desceram. Paulo passou na loja de paramentos e voltou ao templo, ali em frente, no largo:

– Que acha? – perguntou, mostrando uma sineta com um ponto de interrogação incrustado no bronze.

– Bonita – sussurrou Ken, que limpava o guisamento.

– Você está bem?

– Guardião, vi outra vez.

– Onde?

– No depósito.

Paulo era o guardião do templo, e Ken, o fâmulo.

– Fala-se muito em aparições – murmurou Ken.

– Mas nenhuma foi comprovada. Thomas Huxley disse que a dúvida é nosso único legado.

Ken polia uma escultura que abominava: um busto metálico de Epicuro, com pescoço longo e fibroso, como se estivesse retesado sobre os ombros, dos quais pendia uma toga de harmonioso drapeado. Se lhe puxassem o nariz, as comissuras cediam e a boca se abria, acionando um mecanismo que provocava estridente cacarejo (segundo alguns helenistas, palavras dóricas que significavam “mais perguntas, mais silêncio”).

– Se quiser mudar de doutrina, não acho vergonhoso procurar o que deseja.

– Eu não perderia o emprego? – perguntou Ken, depois de pôr o busto sobre um pedestal onde havia uma seta de prata, com a inscrição: Para lugar nenhum.

Eram oito horas da noite quando o guardião Paulo terminou de se aprontar para o culto; chovia forte, e no entanto o templo estava lotado. Paulo vestia habitualmente modesto balandrau, mas nesses dias usava uma túnica cinza coberta por luxuosa opalanda de orlas douradas, com mangas de maniquete e um parafuso bordado nas costas.

O fâmulo Ken tocou a sineta com o ponto de interrogação, e os presentes se levantaram para receber o guardião, que entrou e ergueu o báculo:

– O pão vem do trigo, e os gansos, do Canadá.

Paulo seguiu até o dubitatório, sobre o qual havia uma peanha de mármore que ostentava majestoso parafuso, e sentou-se num setial enfeitado com botões de rosa, diante de farta mesa com fruta, vinho e arroz à grega. Como o arroz preparado por Ken empapara, o guardião comeu algumas uvas, levantou-se e ficou aguardando os acordes do órgão, que logo inundaram o templo. O coro cantou Ode a Xantipa, e todos se sentaram.

– Amados incrédulos – disse Paulo –, hoje vi com tristeza crentes e ateus digladiarem-se numa luta vã, além de presenciar, com maior tristeza, alguns agnósticos aplaudirem o combate. O bom agnóstico deve trilhar apenas sua estrada, e em caso de bifurcação, seguir os dois caminhos. Em 1810, o poeta inglês Samuel Coleridge foi procurado por um persa, que lhe disse: “Sonhei estar no Jardim do Éden, onde me entregaram uma flor e pediram que a trouxesse ao senhor. Quando acordei, a flor estava em minha mão e entendi ser meu dever trazê-la”. Mais tarde Coleridge quis mostrar a flor aos amigos, mas não conseguiu encontrá-la; porque, supôs, tudo não passara de sonho. Recentemente, seu trineto encontrou uma flor entre as páginas de um livro de Coleridge e, pressupondo tratar-se da flor edênica, mandou analisar as pétalas secas. Pelo exame de DNA, os botânicos concluíram ser aquela a flor primeira, da qual se originaram todas as outras; por conseguinte, batizaram a espécie de Mater sylvestris: a flor única oferecida um dia à única mulher pelo único homem. Este fato só não encerra para sempre a contenda entre ateus e crentes, porque, como Coleridge sonhou com o persa que sonhou com a flor, o guardião Paulo Dias também sonhou essa história.

Empolgado com o sermão, Paulo não notara a opalanda enroscar-se no pedestal onde estava o busto de Epicuro, que tombou para trás. Uma mulher correu e conseguiu segurá-lo pelo nariz, mas reposto no pedestal o busto abriu a boca e irrompeu numa gralhada infernal, levando a mulher a saltar assustada e arrastar Paulo de roldão, com ambos desabando sobre o setial de botões de rosa, que não resistiu e desabrochou. Mal se recompuseram, Paulo assentou o báculo na cabeça de Epicuro, e este, com filosófica compreensão, parou de gralhar. O guardião prosseguiu:

– Devemos estar convictos de nossa incerteza, porque...