Toda gente
Sou como toda gente, como todo sujeito da psicanálise, um bicho
feroz e solitário em busca do delicado da vida. Intérprete
do que vejo, sinto e vivo, transformo em coisas palpáveis aquilo
que não passa de fugacidade: sensações, associações,
idéias, desejos e lembranças. Sobretudo, transformo em
busca cotidiana a saudade da sensação una com o colo de
minha mãe, ninho de aquecimento e alimento, onde nenhum esforço
se fazia necessário para que fosse possível viver e crescer
feliz.
É dessa saudade que brotam as escolhas posteriores que se traduzem
em crescimento, amadurecimento e no amor, e seus opostos. É nessa
saudade da idéia de um bem-estar possível nesta vida que
se inscreve aquilo que nos habilita como seres da comunicação
e da linguagem. Aprendemos a estabelecer associações entre
signos e sensações, entre símbolos e objetos, para
que possamos tentar traduzir aquilo que nos falta, aquilo que desejamos
e aqueles que, com seu carinho e cuidado, amenizam a nossa solidão.
Somos seres da linguagem porque somos uma saudade, e tentamos traduzir
o que isso possa significar, vida afora. A linguagem nos permite uma
expiação: acredita-se que aquilo que se diz, que se vê,
que se vive tenha algo de concreto quando, na verdade, é tudo
uma simples questão de associação de signos e de
uma convenção entre os homens. Quando deixamos de ser
macacos e passamos a Homo habilis, aqueles que passaram a manejar ferramentas,
passamos a combinar que isto se chamaria uma pedra, que aquilo seria
o mar salgado e que isto aqui se chamariam mãos, para que pudéssemos
ter alguma chance de sobrevivência. Como se sabe, os ossos do
seu crânio indicam que o Homo habilis podia desenvolver uma fala
rudimentar, o que demonstra que já fazia associações
livres.
E tivemos essa chance, única e exclusivamente como espécie
em que passou a reinar uma ordem pré-estabelecida. Desta forma,
as convenções foram a base de tudo o que é social:
as leis, as possibilidades, as interdições, as linguagens,
as sociedades, as culturas. Nós, humanos, somos a relação
que temos com os nossos significantes, aquela parte do signo que diz
respeito à imagem acústica de um fonema, ou seja, àquilo
que convencionamos chamar de pedra, de mar ou de mãos. Ou, para
ficar mais claro, àquilo que se convencionou chamar de certo,
de errado, de permissão, de proibição, de amor,
de desamor, de sucesso, de felicidade, e assim ad infinitum.
O isto que constitui um ser é essa busca de associações
que, ao darem certo ou não nas diversas etapas de cada vida,
nos ensina a aceitar ou a rejeitar as regras que regulam a vida em comum
no planeta azul. Sobretudo, o isto que nos constitui é
esse lugar vago e nebuloso onde se inscreveram, desde o nosso primeiro
choro nas mãos do médico impiedoso, todos os desejos e
as fantasias de sermos amados, de não sentirmos dor e de nos
sentirmos completos.
Tocamos levemente neste isto quando aprendemos com Freud
a batizá-lo de inconsciente, esse lugar do discurso do Outro
que nos define a priori. E isso desde quando, bebês, temos a experiência
de olharmo-nos num espelho. Quem nunca olhou para aquele ser em frente
ao espelho e não deixou de se perguntar, em algum estágio
de sua vida: quem é esse(a) que ali está? E passou a se
medir com os olhares de um outro sujeito, de uma opinião pública
que, na verdade, reflete incessantemente todas aquelas leis e convenções
que nos estruturam como sociedade e como cultura?
É somente com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão
da verdade, e essa é uma frase de Jacques Lacan, assim como este
é um escrito altamente lacaniano. Somos sujeitos porque somos
intersubjetivos. Lá onde Isso foi, ali devo advir. Um dia fui
só inconsciente, hoje sou uma busca de mim mesmo. Um animal feroz
domado pela linguagem, à procura da delicadeza e do amor.
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