Foi
em agosto de 1997 que eu vi pela primeira vez Caio, Clara e João.
Ainda não eram Caio, Clara e João, mas pequetitinhos
grãos de areia, quase imperceptíveis aos meus olhos
de pai de primeira viagem diante da tela do aparelho de ultrassonografia.
Foi algo entre emocionante e cômico. Afinal, eu e Claudia estávamos
cheios de expectativa em nossa consulta ao ginecologista. O ciclo
atrasara, o exame de sangue dera positivo, o que podia significar
sucesso em nosso tratamento para engravidar. Acontece que, coisa de
dois meses antes, Claudia tinha perdido um moleque (ou moleca), na
pior noite das nossas vidas. Aborto espontâneo, sangramento
extremamente dolorido fisicamente para a Claudia, moralmente para
nós dois. Uma sensação de impotência diante
do inexorável nada a fazer, a não ser esperar
o dia amanhecer...
Bem, esta triste recordação é só para
dar uma idéia de como estávamos ansiosos e tensos. Pois
foi naquela posição esdrúxula em que Claudia
estava, na cadeira do ginecologista, comigo ao lado, que ouvimos do
médico a esperada notícia:
Claudia, você está grávida! Está
vendo aquele grãozinho de arroz? Pois aquilo é um embriãozinho...
disse doutor Ricardo.
Tem certeza? Está tudo bem com ele? perguntou
ela, apertando minha mão.
Epa, Claudia, são dois. Você vai ter gêmeos!
prosseguiu o médico.
Você está brincando disse Claudia, segurando
o choro de felicidade.
Claudia, o que você foi arrumar? São três!!!
Eu, que estava chapado diante da imagem dos tais grãos de arroz,
fiquei meio abobado, mas abobado em plenitude aquele estado
de espírito em que você tem convicção de
que está com cara de idiota e se orgulha dela. Quando ouviu
isso, Claudia, que estava naquela posição nada cômoda,
começou a tremer as pernas afastadas.
São três? Ai, meu Deus do céu! disse,
com ar de aparvalhada.
Eu, pateta assumido, ainda cometi a seguinte frase:
Não tem mais nenhum não, né?
Saímos do consultório nas nuvens. Nos beijamos emocionados
no elevador. Nossa aventura começara.
A gravidez correu tranqüila. Só levamos um susto quando
Claudia voltou a sangrar e um dos fetos descolou-se um pouquinho da
placenta. Ficamos com muito medo de aquele pesadelo se repetir. Mas
foi só susto mesmo.
Logo nas primeiras semanas do terceiro mês, soubemos o sexo
de Caio e Clara. João cismou de esconder o pinto não
sei onde e só no quinto mês descobrimos o sexo dele.
Por um algum tempo, chamou-se Eros. Consegui convencer Claudia, mas
depois abandonei a idéia: acho que poderia criar ciumeira entre
os moleques. O que ganhasse o meu nome poderia achar que gosto mais
do outro.
Ao longo de toda a gravidez, Claudia só teve um desejo, nada
esquisito como arroz com goiabada ou jiló no sorvete de passas
ao rum. Uma simples batata ao forno, que tem no Rio Sul. Desejo que
eu acabei não atendendo, por sinal. Ainda bem que nenhum deles
tem cara de batata.
Claudia cresceu rapidamente. Ficou com uma barriga imensa, mas só
barriga o rosto até ficou mais magro. Quem mais
sofria com o aumento dela, sinceramente, era eu. Afinal, para dormir,
Claudia tinha que botar dois travesseiros e deitar-se de lado com
uma das pernas em cima deles. Ou seja, meu espaço na cama ficou
reduzido a um terço, se tanto. Mas era batata: qualquer vacilo
da Claudia e lá estava eu com a perna em cima dos travesseiros.
Era instintivo: ela dava sopa, eu me agarrava a eles.
Ela ficou parecendo uma pata. Tinha que andar com as pernas afastadas
do contrário, poderia cair para a frente. O ritmo e
a velocidade foram diminuindo. Claudia só era rápida,
muito rápida mesmo, quando sentia ânsia de vômito
e levantava-se correndo no meio da noite até o vaso. Ali, parecia
um caminhão-baú desgovernado.
Mas quem amarelou no dia do parto fui eu, admito. Eles nasceram de
cesariana parece óbvio mas, até bem próximo
da data, Claudia acalentava o sonho de um parto normal. Só
que, para isso, teria que haver condições especialíssimas:
os três tinham que estar enfileirados, como numa parada do exército
russo. No entanto, disciplina era coisa que passava longe da gurizada
a pancadaria comia solta dentro da piscina olímpica
em que se transformara o ventre da Claudia. Sabe aquela história
de quem foi ao vento perdeu o assento? Pois é, aconteceu uma
dúzia de vezes, ora com João, ora com Caio, menos vezes
com Clara, que dificilmente se distraía e deixava seu lugar.
Voltemos ao parto propriamente dito. Aconteceu um dia depois do meu
aniversário, em março. Somos todos os cinco a
família inteira, portanto piscianos. Os de verdade,
João e eu. Os outros, Claudia, Clara e Caio, só circunstancialmente.
Preparei
a filmadora, emprestada pela Sonia, irmã da Claudia, e levei
para a maternidade a máquina fotográfica e um sangue-frio
que não era meu. Bem, chegamos lá às três
da tarde, acho. Ficamos eu, Claudia e dona Lelia, mãe dela,
falando amenidades no quarto. Às 17h30m, Claudia seguiu para
a sala de parto, para os procedimentos iniciais que, pela quantidade
de sangue no avental do doutor Ricardo, mais parecia um roteiro de
As aventuras do açougueiro bebum. Quando eu entrei
na sala, uniformizado de assepsia, me resignei a uma cadeirinha ao
lado da cabeça da Claudia, evitando olhar para o sangue nos
aventais dos obstetras e do pediatra, auxiliado por mais dois profissionais
convocados só para segurar os moleques.
Assisti, impávido e emocionado pacas, é a maior
emoção da vida à chegada de João,
Clara e Caio (o primeiro é mais velho por dois minutos). Cheguei
até a um impasse com doutor Leopoldo, o pediatra deles. Na
confusão organizada que foi o parto dos três, acreditava
que, pela posição no ventre, o primeiro que fora puxado
para fora do Maracanã era a Clara. No que me respondeu o pediatra,
com o João nos braços:
Se com este pinto é uma menina, pode me chamar de Odete.
Nem preciso dizer o quanto minha ansiedade contrastava com o clima
reinante na sala de parto. Até Claudia estava descontraída.
Entrou na onda tão logo o anestesista desmontou seu medo rebatendo,
de bate-pronto, a justificativa dela para tamanho temor.
Eu nunca tomei anestesia antes disse Claudia, morrendo
de medo da agulha.
Pois, então, somos dois: eu nunca dei anestesia antes
respondeu ele.
Foi o estado de graça de Claudia que garantia nada estar
sentindo, uma dorzinha sequer, qualquer mal-estar que me expulsou
da sala de parto. Tinha visto a molecada toda, que estava sendo devidamente
limpa daquela placenta gosmenta pelos pediatras, quando comecei a
ficar lívido, amarelo e dei aquela estremecida clássica.
Mais que depressa, Claudia, toda serelepe, apesar de imóvel
debaixo de lençóis, percebeu e me dedurou:
Doutor Ricardo, olha como ele está amarelo! Ele vai
cair! denunciou, alheia à minha dignidade de orgulhoso
pai de três.
A equipe toda um time com torcida concordou com ela.
Eles me fizeram sentar e pouco depois tiraram-me da sala.
Voltei um pouquinho mais tarde, só o tempo de dar uma beijoca
na Claudia, uma rápida olhadela nos moleques e sair mesmo de
cena. Antes de voltar para o quarto, ainda tive tempo de assistir
a uma cena linda, linda. O pediatra e os dois auxiliares acabavam
de sair da sala de parto, cada um com um dos filhotes nos braços.
Corriam com eles rumo à enfermaria neonatal, em frente ao berçário.
Foram ovacionados pelos muitos visitantes que iam conferir as feições
de filhos, sobrinhos e afilhados na clínica.
Discretamente, num canto, eu chorei.