Memórias de Padre Bruno

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Tonho puxava a fila. Atrás ia Zeca, seguido por Bernardino, na frente de Zacarias, Bideco, Quincas, Batista e Bidico, todos na trilha escorregadia, o caminho mais curto para chegar ao velho canavial. A tarefa do dia era capina geral, tirar as folhas secas da cana lá deixadas, para receber o esterco de curral que o coronel fez juntar e curtir durante o ano. O esterco ia pelo caminho mais longo, no carro de bois, com só uma junta puxando, para ser espalhado no canavial, misturado com bagaço de cana, a melhor maneira de adubar a terra. Serviço que meu padrinho mandava fazer para a soca sair com viço de cana nova. Nas ruas que ficavam no meio das touceiras da cana cortada durante a safra do ano, seria plantado o feijão das águas e milho depois do feijão colhido, para aproveitar o terreno limpo. De tudo um pouco para vender, mais para a serventia da fazenda e alimentação dos agregados.

A mandioca estava no ponto de ser arrancada, e na semana seguinte essa seria a ocupação: arrancar as raízes e transportá-las para a casa de farinha, e lá, lavar, raspar, sevar, espremer na grande prensa de fuso, peneirar e levar a massa seca ao forno de cobre para torrar.

Nesse serviço, quando a mandioca era muita, os meninos também entravam na lida, lavando as raízes no riacho que passava por trás da casa de farinha, um ramal tirado da cachoeira, bem acima do remanso que formava o poço onde eu e os meninos da minha idade passávamos a maior parte do tempo que a madrinha nos deixava livres.

Meus companheiros mais íntimos, Fabinho, Artur e Prudêncio, ainda tinham que ajudar os pais. Levantavam cedo, ainda no meio-escuro da madrugada, para dar raspa de mandioca para as galinhas que possuíam e, depois do café, subir no pé de fruta-pão e escolher as que estivessem bem maduras. Serviria para substituir a batata no ensopado de carne ou de peixe e, depois de assada, como acompanhamento do café da tarde. O resto do dia, ou ficávamos no remanso da cachoeirinha ou armando esparrelas nos galhos mais altos do velho guapuruvu, para pegar sabiás, porque os pássaros que ficavam nas árvores mais baixas, qualquer um de nós acertava uma pelotada de jogar os pobres bichinhos ao chão. Era só apanhá-los e passar em água fervendo para depenar. Os três repartiam o resultado da passarinhada entre eles, porque na fazenda, a madrinha não admitia que as cozinheiras ficassem perdendo tempo com aves pequeninas, quando no terreiro havia galinhas de sobra, e o padrinho preferia comer as polacas, de pescoço sem penas, que na apreciação dele tinham a carne mais saborosa.

Para mim, o dia da farinhada era um dia de festa. Aquela gente toda naquela lida alegre, contando histórias
enquanto faziam o serviço. Naquele dia não pude ficar muito tempo zanzando entre o pessoal da casa de farinha, porque dona Arminda, minha madrinha, interrompeu o meu sem-o-que-fazer e me mandou, em companhia de meus três amigos, para o goiabal que existia na baixada dos ingazeiros, um quilômetro além da casa da fazenda. O serviço era colher todas as goiabas maduras, lavá-las bem na cachoeirinha, para depois cortá-las ao meio, separar a polpa da casca, que ia para o grande tacho de cobre, brilhando pela esfregação de caldo de limão bravo com cinza. Então, Sá Chiquinha se incumbia do resto. Era dela a obrigação de calcular o açúcar e ficar mexendo com a colher de pau de cabo longo, até apurar o ponto de passar a goiabada para as caixetas de madeira. As polpas, depois de passadas na peneira fina, separadas dos caroços, iam para o tacho menor, e ficavam no fogo até apurar a geleia que era distribuída na infinidade de potinhos de barro. Tudo seria levado para a cidade, os presentes que todos os anos o padrinho ofertava aos amigos, compadres, proprietários de armazéns, agente do correio, o prefeito, se fosse do partido, e mais as amigas da madrinha.

A semana inteira era de muito serviço, e se eu não escapulisse logo pela manhã, ficava preso o resto do dia, lavando tripa de porco para encher de carne e toucinho, para as linguiças que ficavam penduradas no fumeiro para curtir e ficar com aquele cheiro que dava água na boca.

Os porcos mortos, depois do pelo queimado com fogo de palha de milho, eram bem raspados, abertos e esquartejados. Os pedaços preferidos iam para a frigideira e, depois de fritos, para a barrica com gordura derretida. Ali podiam ficar por um ano ou mais. Se alguém chegava à fazenda fora da hora das refeições, era só meter a colher de pau na gordura branca, tirar de lá alguns pedaços e esquentar na frigideira. Era “mistura” para acompanhar um prato de angu de milho, que ninguém deixava de apreciar.

A turma que lavava as dornas e as pintava por dentro com uma mistura de água e cal de marisco tinha a obrigação de cobri-las com a coberta de lona, para evitar a entrada de bichos – gambás eram os mais atrevidos – pois quando chegasse na época de começar a nova safra, o padrinho queria tudo em ordem, dando o mínimo de trabalho. Também Chico Tanoeiro começava a verificar os barris, as quartolas e os tonéis, para ver se havia vazamentos, e o estado dos arcos de ferro. Se havia algum enferrujando, seria trocado antes que arrebentasse e provocasse maior vazamento.

Juca se via às voltas com os dois alambiques, usando o auxílio de Maneco, seu filho moço, aprendiz do ofício, para pôr rebites nos pequenos furos ou botar remendo de cobre nas partes mais desgastadas pelo fogo constante no seu fundo, por um ano de alambicagem.

Tudo era feito com pressa, porque meu padrinho queria passar o Natal na cidade, assistir à Missa do Galo e à missa da passagem do ano, fazendo parte dos homens de opas vermelhas da Irmandade do Santíssimo, da qual ele era membro benemérito, pois padre Urbano não se cansava de dizer: se todos os fazendeiros dessem a mesma contribuição que ele dava, não haveria necessidade de estar fazendo quermesses, correr listas pelas famílias mais bem situadas, na humilhação do peditório, sempre que havia necessidade de restaurar um altar ou reparar o telhado de uma igreja, para livrá--la das impertinentes goteiras.