Para Sempre Ana
Uma cidade, uma lenda; muitos sonhos, uma história:
longo caminho de luzes e sombras


Início:


Parte I
Impressões turvas

Capítulo 1
Sob o espectro da loucura


11/12/2011 (domingo)

Um jovem carregando apenas sua mochila começa a despontar sob o belo e colorido alvorecer de Três Luzes, um dos mais aconchegantes distritos do município de Senador Mariano. Encravado na região serrana do estado, suas casas espalham-se sobre um vale verdejante, cercado de colinas cobertas por um viçoso bosque de pinheiros.

Antes de ser ocupada, a planície era frequentemente visitada por diversas caravanas de supostos desvairados, que afirmavam ser ali um campo de pouso utilizado por alienígenas. O mais famoso desses grupos jurava que três naves costumavam pairar em média altitude sobre o lugar nas noites de lua cheia, quando a luminosidade de nosso satélite natural encobriria a movimentação furtiva da pequena esquadrilha. Durante algum tempo, procurar os três pontos brilhantes no céu tornou-se uma fascinação. Mas, como nenhum morador das vizinhanças jamais confirmou tal história, as poucas fotos duvidosas tiradas do hipotético fenômeno nunca foram suficientes para lhe dar credibilidade. De qualquer forma, sendo ou não as aparições luminosas uma fantasia, a planície logo foi batizada de “Vale das Três Luzes”, denominação que sobrevive até os dias de hoje.

Desde sua fundação, o lugar sempre teve um caráter elitista. As primeiras construções foram os chalés de um luxuoso condomínio, rapidamente comprados por famílias abastadas e transformados em casas de veraneio. Com o crescimento imobiliário, o vale foi transformando-se em local de moradia para profissionais capitalizados de nível superior, que chegaram gradualmente em busca de um lugar sossegado para morar, investir e trabalhar.

Apesar de possuírem elevado nível sociocultural, os triluzianos desenvolveram hábitos relativamente provincianos, os quais cultivam com desvanecimento. Gostam de frequentar as missas dominicais, defendem valores tradicionais e sentem-se pouco confortáveis diante de certos comportamentos mais avançados. Outra característica interessante desses altivos habitantes é o imenso orgulho que sentem do lugar. Embora a denominação oficial seja “Distrito do Vale das Três Luzes”, eles o chamam solenemente de “Cidade de Três Luzes”. E ai de quem ouse discordar!

O jovem recém-chegado, de nome Caio Rigotti, pode ser considerado filho dessa terra. Ele nasceu na capital, mas viveu grande parte da infância em Três Luzes, antes de ser levado embora da cidade. Hoje, com apenas dezoito anos, possui um caráter responsável precocemente desenvolvido, talvez em virtude das severas atribulações pelas quais viu os pais passarem. Contudo, esse traço de sua personalidade não abrandou a alegria inata que tem diante da vida. Seu retorno se deve ao desejo de rever a mãe, Ana, desaparecida há mais de uma década. Sem qualquer pista sobre o paradeiro dela, Três Luzes parece o ponto de partida óbvio para inaugurar a busca tão sonhada e cuidadosamente planejada.

O sol ainda sobe no horizonte e Caio, embora afoito, precisa esperar mais um pouco antes de enveredar-se na difícil empreitada, a qual pretende iniciar especificamente pela igreja. Ele, então, senta-se em um dos bancos da praça central, retira a mochila das costas, abre-a e puxa um pequeno caderno, usado nos momentos de ócio para escrever sobre lembranças, pensamentos e ideias. Rodeado pelo belo cenário da cidade que o abrigou na infância, pega uma caneta e sente inspiração para um texto mais esmerado. Compenetrado, começa a pôr as palavras no papel:

Aprendi desde cedo como é triste o destino dos escravos das paixões. Em meu passado, eu os vi causar sucessivas tragédias. A avidez que têm por sentir transforma seus sonhos em ilusões, que, navegando às cegas, aportam em miragens. Mas miragens são efêmeras e frágeis. Desvanecem gradualmente, logo deixando transparecer o vulto da infelicidade, que confunde, atormenta e, finalmente, enlouquece. Não é difícil perceber que os escravos das paixões são vitimados pelo egoísmo dos próprios desejos.

Antes mesmo de concluir o primeiro parágrafo, Caio é desconcentrado por uma estranha vibração, um ruído surdo. Ele sossega a caneta, olha para a frente e se depara com as ruas da cidade ainda completamente desertas. O frêmito se repete, desta vez fazendo o jovem, incomodado, levantar-se. Não é um barulho que se ouve, mas se sente. Uma rápida sondagem visual ao redor é incapaz de indicar a origem do incômodo tremor. Caio guarda o pequeno caderno e a caneta, recoloca a mochila nas costas e passa a caminhar, atraído em direção à igreja, coincidentemente o local pelo qual planejava iniciar a busca por sua mãe.

23/10/2000 (quarta-feira)

Mal chega ao distrito, o delegado Irineu, conhecido na cidade de Três Luzes por sua sagacidade, é chamado à cela. O novo detento, encarcerado no final da tarde passada, está frio e imóvel. O policial reage com um misto de frustração, pesar e angústia, pois estima o rapaz, sua mãe e a memória de seu falecido pai. Ele fixa rapidamente a cena: o corpo está deitado de bruços, o braço esquerdo estendido, o direito paralelo ao tronco e o sangue ainda a gotejar sobre uma poça meio ressequida. Diante do quadro irreversível, ele põe-se a caminhar com ar letárgico até a escrivaninha em seu gabinete, de onde tomará as providências para a remoção do corpo. Seguindo uma tendência natural, contra a qual é incapaz de lutar, inicia mais uma de suas reflexões filosóficas durante o curto trajeto.

Em sua convicção, os verdadeiros suicidas são impelidos por uma ou mais dentre três motivações: o inconformismo, que impede a aceitação passiva de um fim incerto e provavelmente cruel; o desespero, que desencadeia uma ação premida pelas circunstâncias; e a vingança, que provoca a utilização do próprio sofrimento como forma de agredir o próximo. Esse prazer sádico, o desejo de assumir as rédeas do destino e a falta de esperança seriam, então, os combustíveis para a autodestruição. A loucura até poderia ser considerada como um quarto estímulo, mas os insanos não detêm o real controle de suas ações. E haveria ainda os falsos suicidas, que se arriscam apenas para mostrar aos entes queridos o quanto necessitam de ajuda, não querendo, no entanto, a efetivação da morte.

O prisioneiro, de nome Carlos Rigotti, certamente integra o segundo grupo. Extremamente aflito há meses, acabou detido devido a um delito marcado para ocorrer.

“Como não percebi no exagero daquele gesto o prenúncio de uma tragédia?”, pensa constrangido o delegado, deixando o corpo cair sobre sua cadeira. “A atribulação de minha rotina encobriu uma obviedade: o iminente suicídio do rapaz. É inaceitável que um profissional com minha experiência não tenha tomado as devidas providências para evitar esse trágico desfecho.”


Capítulo 2
O regresso de Ana

25/12/1993 (sábado)

Os convidados começam a chegar. Repetindo um costume que virou tradição, o doutor Nestor Rigotti promove um almoço de Natal para as famílias de seus pacientes e amigos. Ele se mudou da capital para Três Luzes há mais de vinte anos, trazendo consigo a esposa, Márcia, e o filho de seis meses, Carlos. Para alívio das mães mais abastadas do lugar, acabou fixando-se como pediatra na cidade. Antes de sua chegada, elas eram obrigadas a viajar ao centro de Senador Mariano sempre que necessitavam de auxílio médico para os rebentos. Mesmo dispostas a arcar com os custos de um tratamento particular, os únicos profissionais lá disponíveis só trabalhavam na rede pública e, o pior, proporcionavam consultas rápidas e frias.

Nestor é um médico cativante. À empatia que possui com as crianças, acrescem-se sua paciência para ouvir os lamentos das mães e seu poder de tranquilizá-las, o que o leva, ocasionalmente, a assumir as funções de um terapeuta, especialista, aliás, inexistente na cidade até os dias de hoje.

Márcia é bela, inteligente e invariavelmente simpática. Ainda assim, algumas conhecidas menos fiéis juram que tais características não a impedem de carregar grandes tormentos. Um dos motivos seria a frustração profissional. Ela também tentou seguir os passos do marido, o qual foi seu colega de turma. No entanto, a concorrência do cônjuge lhe foi desfavorável. Após um período atendendo alguns parcos pacientes, resolveu dedicar seus conhecimentos somente à própria prole, deixando o carisma do companheiro zelar pelo sustento da casa.

Carlos também seria fonte de grandes preocupações para a mãe, pois a condição de filho único teria sido agravada por uma criação demasiadamente permissiva. Ele herdou a beleza dos pais, mas, extremamente disperso e movido a paixões, parece não ter adquirido a responsabilidade. Alguns dizem ser precipitado o mau julgamento de seu caráter. O antigo hábito, por exemplo, de se divertir sem compromisso com as moças do lugar ainda enseja uma desconfiança nos mais céticos, mas, no fundo, aquilo talvez fosse apenas o resultado de um amadurecimento incipiente. Cristiana, mais conhecida por “Cris”, primeira namorada fixa do rapaz, é uma das que elevam suas qualidades. E ser elogiado por moça tão respeitada – neta de dona Gertrudes, professora que educou muitos moradores locais – ajuda a aumentar sua credibilidade na comunidade. Embora já se conhecessem de vista há tempos, a aproximação do casal se deu durante a comemoração da penúltima festa de 12 de novembro, aniversário da cidade. Cris não se envergonha e admite cultivar uma admiração especial por Carlos bem anterior àquele evento.

Neste ano, os anfitriões resolveram utilizar novamente o espaçoso jardim defronte à casa como palco do almoço. Mandaram espalhar as mesas pelo gramado, em torno da piscina e sob o telhado da grande varanda. Cada grupo familiar que chega reverencia o doutor. Entre eles, estão diversas autoridades, como o jovem subprefeito, o delegado Irineu e o padre Motta – confidente fiel e um de seus maiores amigos – que, por essas qualidades, é sempre lembrado na confecção dos convites. Como não podia deixar de ser, Cris e a avó são chamadas para se sentar ao lado dos Rigotti. Márcia está muito feliz com o relacionamento de mais de um ano de Carlos, pois a capacidade de se comprometer seriamente com uma boa moça seria um sinal do crescimento interior do filho.

– Estão chegando a mais velha e a mais nova professora de Três Luzes – brinca dona Gertrudes, enquanto se aproxima do casal anfitrião para cumprimentá-lo.

– Nossa! – admira-se Márcia. – Cris já concluiu o curso?

– Terminou neste mês – conta a orgulhosa senhora.

Após as saudações, os cinco ocupam seus lugares.

– Você está pensando em seguir carreira por aqui? – interessa-se Nestor.

– Estou – responde Cris. – Uma escola da capital fez uma boa proposta de emprego, mas prefiro me manter na calma do interior.

– Fez bem! Eu sou uma amostra de que não só os grandes centros proporcionam ascensão profissional.

– É verdade – concorda Gertrudes. – Nunca me arrependi de ter escolhido viver nesta abençoada calmaria.

Carlos participa a contragosto do “festejo abominável” e não tarda a meditar negativamente sobre os diálogos ouvidos.

“Todos superestimam as próprias conquistas, vangloriam-se sem merecimento. Essa autoveneração é algo inconsciente ou faz parte de um estranho jogo social? Papai se envaidece do quanto ‘trabalhou’ para juntar seu patrimônio. Mas ele, assim como mamãe, nasceu em berço de ouro. Seu único esforço real foi passar alguns anos na faculdade. Até as clínicas foram montadas com o dinheiro do vovô.”

– Qual sua opinião, Carlos? – pergunta Gertrudes, arrancando-o das lucubrações.

– Como?

– O que acha da vida no interior?

Sem paciência para refletir sobre indagações frívolas, ele desfecha:

– Uma chateação! Um pouco de movimento não faz mal a ninguém. Se me oferecessem um trabalho na capital, não hesitaria em aceitar.

– Para isso, você precisa estudar primeiro – alfineta seu pai, provocando um levantar de sobrancelhas no rapaz.

– Não fui autorizado a frequentar o curso de meu agrado... – debocha.

– Arte não é estudo, é hobby! – levanta a voz Nestor. – Mesmo sendo um pouco tarde, já lhe disse que estou disposto a custear uma faculdade particular de medicina.

– E eu já lhe disse que não quero ser médico! – responde Carlos, também subindo o tom.

Aflita, Márcia tenta encerrar a discussão entre pai e filho ao dirigir--se a Cris.

– Você vai lecionar para crianças pequenas, não é mesmo? – desconversa.

– Sim, darei aulas de Português para as turmas do primário.

– Deve ser um desafio enfrentar alunos dessa faixa etária.

– Estou um pouco insegura... Mas logo me adaptarei.

– Ora, não seja modesta, querida – diz Gertrudes. – Seu talento para lidar com crianças e adolescentes é inato e admirável.

O elogio exagerado da avó arranca um sorriso encabulado da moça. A velha professora prossegue:

– É uma conquista ver minha neta, uma pessoa responsável e capaz, seguir meus passos na linda carreira que abracei desde cedo. Deus tem sido muito generoso comigo – discursa, sob o olhar terno de Márcia e Cris. – Tudo o que desejei na vida me foi concedido. Só rezo por mais uma dádiva: chegar aos oitenta anos de idade – revela e ri da própria tolice, pois ela mesma vive a criticar a cisma das pessoas em dar uma significação especial e fútil aos números redondos. – Há tempos venho sonhando com uma festa repleta de familiares, amigos, ex-alunos...

– Eu tenho certeza que a senhora passará dos noventa, vovó – diz Cris, sob a firme e carinhosa concordância da anfitriã.

– Ainda é muito cedo para afirmarmos isso. Mal cheguei aos setenta e quatro anos e quatro meses – graceja e emenda uma risada franca.

Enquanto a maioria dos convidados aproveita o momento de descontração para conversas amenas, Irineu – para a infelicidade de Clara, sua mulher – permite que o padre, adversário frequente em contendas filosofais, compartilhe a mesa com eles. Quando encontra um interlocutor animoso, o delegado é capaz de passar horas em devaneios surreais. Certa vez, durante um almoço de domingo na casa do sogro, encetou uma discussão com o cunhado. Eles largaram as esposas de lado e, munidos de muita disposição argumentativa, despenderam a tarde debatendo sobre o nada. O pároco, por sua vez, tem como passatempo formular teorias que supostamente provam a insanidade dos ateus, os quais iguala aos agnósticos. Simpatizante da doutrina destes últimos, Irineu não aprecia tal comparação. Também não se regozija ao ter suas ideias confrontadas por meros dogmas religiosos. “Exijo bases racionais”, diz sempre. Clara preocupa-se, pois sabe que ambos costumam inflamar-se conforme avançam em um embate verbal. E, no auge de uma eventual discussão, ninguém será capaz de deter a impetuosidade desses defensores da verdade. Após poucos minutos de uma agradável e trivial prosa, padre Motta provoca:

– Aquela tese burlesca sobre realidade concreta e ilusória ainda serve ao seu espírito? – pergunta, com seu provocativo falar empolado.

– Burlesca aos cegos – diz Irineu, fazendo do cinismo uma afirmativa.

– Cego por ver na Bíblia a janela para a realidade?

Clara, vislumbrando a confirmação de seus temores, levanta-se e pede licença para cumprimentar algumas amigas. No mesmo instante, os anfitriões convidam Gertrudes e a neta para conhecer o interior da casa. O grupo se afasta em direção à porta social e Carlos, muito tenso, fixa os olhos na namorada à procura de coragem para chamá-la em um canto escondido qualquer do jardim e confessar um sentimento intenso, nunca antes experimentado. Esse desejo inédito se tornou urgente e o fez trazer para a festa alguns versos preparados anteriormente. Mas ele estremece ao imaginar-se declamando-os, ou mesmo os entregando escritos no papel, situações em que certamente pareceria patético. Se ao menos pudesse prever o olhar, a reação de Cris... Tudo, porém, é uma incógnita... Ela poderia rir de sua incursão ao mundo romântico e fazê-lo sentir--se o mais ridículo dos homens.

Na expectativa do almoço, praticamente ninguém mais está sentado. Alguns convidados caminham pelo gramado, outros integram animadas rodas de conversa. Clara já está unida a um círculo afastado de conhecidos quando seu marido e o padre chegam à fase da exaltação. Carlos, alheio ao constrangimento enfrentado pela mulher do delegado, desperta de seus pensamentos e se sobressalta ao ver a imagem de uma bela jovem atravessar a entrada principal. É inacreditável tamanha audácia! Acuado, ele ainda não aceitou tal fato como parte de sua realidade. Tentando não ser visto pela intrusa e desejando que seus pais se detenham ao máximo dentro da casa, ele se levanta e passa a perambular de um lado para o outro. Na condição de primeiro incauto desacompanhado a aproximar-se em demasia de Irineu e Motta, é prontamente convocado a opinar.

– Diga aqui, meu rapaz – solicita o padre esbaforido, sem se importar a quem chama. – O que você pensa da realidade?

– Como assim? – indaga, mais aturdido pela presença da moça do que pela falta de sentido da pergunta.

– A realidade realmente real – grita sem perceber o delegado, procurando formular o questionamento de forma mais completa.

– Acho a realidade... um tormento – hesita.

– Não é essa a questão, meu filho – aborrece-se o padre. – Estamos falando de Deus. Você crê nas verdades do Senhor?
Irineu não contém a ira e vocifera:

– Estamos falando de Deus uma ova! Você está falando de Deus! – protesta e volta-se para o rapaz. – Se formos discutir sobre a realidade, devemos atentar para algumas premissas, concorda?

Carlos balança a cabeça com movimentos curtos e desritmados, olhando seguidamente para a moça, que tenta visualizá-lo em meio à multidão de convidados. Padre Motta encara seu oponente com os músculos da face tensionados. Irineu prossegue empolgado e certo do que afirma, passando a elencar as tais premissas:

– Veja se não faz sentido: primeiramente, podemos declarar que as realidades particulares e conflitantes, por diferirem da concreta, são ilusórias; em segundo lugar, livrando o espírito da arrogância, não é difícil perceber que a realidade concreta, em regra, pode, no máximo, ser vislumbrada – discursa, também fazendo do linguajar pomposo um recurso incitativo. No desejo de mostrar desprezo pelo religioso, o delegado se dirige a Carlos: – Você entendeu essas duas primeiras, meu jovem?

– Entendi, entendi... – responde nervosamente.

A penetra, apesar de próxima, não vê Carlos. Ele retorce o corpo e procura ocultar-se sob as corpulentas silhuetas dos embebidos debatedores.

– Você não consegue enxergar o óbvio, e sou eu o cego? – lamenta padre Motta, conferindo uma entonação de superioridade à voz.

– Não me atrapalhe, pois ainda não terminei! Em terceiro lugar, podemos dizer que o vislumbre menos distorcido da realidade concreta é o propiciado pela razão; e, em quarto, que a razão é a conscientização e o aperfeiçoamento parcial do foco ilusório fornecido pelas emoções.

Carlos consegue entrever a moça incomodando os presentes, certamente a perguntar por ele. O padre esboça uma manifestação de repúdio ao que ouviu, mas Irineu o atropela. O delegado discorre rapidamente, demonstrando convicção e evitando ter sua fala igualmente interrompida.

– A visão emocional é o estágio mais primitivo em que podemos nos encontrar. A racional, o mais elevado. E é no primeiro que vocês, passionais, encontram-se. Para desatolar, precisam aprender a pensar por si próprios.

– Você está me pondo no nível dos supersticiosos? – irrita-se o padre.

– Tanto quanto você me coloca no dos ateus e outros indolentes.

– Você é um ignorante, nunca tocou o Livro Sagrado. Leia a passagem...

– Não me venha com seus “Judiões”, “Juliões” e muralhas do “Jequiró”.

– Não blasfeme! – berra o padre, despertando a atenção dos mais próximos.

A jovem finalmente encontra Carlos, que de esgueira se afasta o quanto possível de qualquer convidado. Ela vai atrás e o intercepta sem dificuldade.

– Por que está fugindo de mim? – indaga a moça, de nome Ana.

– O que fiz para merecer isso? – questiona-se o rapaz, dirigindo o olhar ao firmamento.

– O que você fez está com um dos seguranças.

– Por que o trouxe? – desespera-se ele, passando a mão direita sobre a testa. – Não falamos a respeito anteontem?

– Você foi o único a falar. Quando terminou, saiu sem me deixar responder e sem resolver nada. Então, achei que esta seria uma ótima oportunidade para conversarmos e contarmos tudo a seus pais.

– Está louca? Mesmo que eu tivesse a intenção de contar tal história a eles, não seria esta a ocasião. Além do mais, minha namorada está aqui.

– Ah, sim... Cris, a “equilibrada”, a mulher perfeita... – diz com escárnio. – Não acha recomendável que um relacionamento sério se baseie na verdade? – pergunta, ainda zombando. – Eu posso ajudá-lo nisso.

– Você não vai interferir em nada, pois é uma penetra tanto na festa quanto em minha vida... Aliás, como entrou?

– Eu disse que meu convite estava com você. Deixei o menino dormindo na recepção e entrei para procurá-lo.

– Vou lá desmentir e pedir que a retirem da festa.

– Se fizer isso, poderá se arrepender – ela ameaça. – É melhor me levar até a mesa de sua família.

– Você é muito descarada!

– Prefere que eu vá sozinha? Eu conheço seus pais – diz, dando as costas para Carlos e começando a caminhar.
Ele a segue, agitado.

– O que quer de mim?

– Que assuma seu filho.

– As coisas não funcionam assim. Só fiquei sabendo de tudo há dois dias. Por que não me procurou quando soube estar grávida?

– Na vida, tudo deve ser feito em seu devido tempo.

Carlos não consegue concentrar-se em contra-argumentações inúteis. Só o que quer é tirá-la dali. Mas Ana está determinada a falar com Nestor e Márcia. Desnorteado, ele passa a acompanhá-la resmungando sons incompreensíveis, talvez tentando formular o que dirá a Cris e a seus pais. Ela vê a mãe e a namorada do rapaz saindo pela porta da casa. Imediatamente, vai ao encontro das duas.

– Boa tarde – cumprimenta Ana, estendendo a mão à anfitriã do evento.

Márcia a encara por alguns segundos, finalmente respondendo à saudação.

– Por acaso, eu a conheço?

– Talvez. Moro perto daqui, em Senador Mariano. Mas não costumo vir muito a Três Luzes.

– Você é alguma nova paciente de Nestor?

– Quem sabe virei a ser... – responde, esboçando um sorriso sonso.

– É amiga de meu filho?

– Sim. Nós nos conhecemos durante o penúltimo aniversário da cidade.

Cris estranha o que acaba de ouvir. Ela o fita, mas Carlos, perturbado, desvia o olhar.

– Sente conosco – oferece Márcia. – Filho, mande preparar a mesa para mais uma convidada.

Ele se afasta para atender a ordem. Enquanto procura vagarosamente um garçom, experimenta uma comoção nunca antes sentida. O peso da cabeça aumenta na medida em que o coração acelera, o abdômen se contrai involuntariamente e a garganta não deixa a respiração, alterada, fluir como deveria. Cumprida a determinação da mãe, inicia o caminho de volta a passos curtos. A certa distância, detém-se por alguns instantes e vislumbra o clima de consternação que já se abateu sobre todos à mesa. Ele pensa em abandonar a festa, mas tal atitude aniquilaria suas chances de explicar o ocorrido. Assim, esforça-se para controlar um repentino tremor e retoma o trajeto, mas de forma ainda mais lenta. Um a um, Nestor, Márcia, dona Gertrudes e Cris fixam seu rosto com fisionomias ameaçadoras. Ana, com os olhos marejados, é a única a manter a cabeça baixa. Cris reúne forças para não exprimir sua tristeza de forma semelhante.

– O que houve? – gagueja Carlos.

– Estou muito decepcionada com você, meu filho! – confessa Márcia, tremelicando a voz.

Neste momento, seguindo determinação da anfitriã, um dos seguranças traz a criança dormindo profundamente em seu colo.

– Muito obrigada. Entregue-o à mãe e se retire, por favor – a dona da casa ordena.

Os convidados mais próximos percebem algo de errado e procuram, disfarçadamente, compreender as razões daquela estranha movimentação no núcleo dos Rigotti.

– Por que não nos contou sobre isso? – pergunta Márcia.

– Como eu poderia contar? Só soube do garoto anteontem – responde Carlos, ainda de pé.

– Você sequer imaginou que sua irresponsabilidade poderia gerar uma gravidez na moça?

– Sua falta de juízo é o menos chocante – interrompe Cris, levantando-se e não contendo mais as lágrimas. – O mais triste é você ter saído com uma estranha no mesmo dia em que começamos a namorar.

– Não foi bem assim – retruca o rapaz, quase inaudível pela falta de convicção. – Naquele dia, eu e você apenas conversamos. Não acreditei que iríamos namorar de verdade.

– Essa qualidade de comportamento pode ser natural lá na capital, meu filho – interfere dona Gertrudes, chocada com a declaração do ex--aluno. – Mas, aqui em nossa cidade, não é tolerável!

– Você traiu a minha confiança – lamuria-se Cris.

Como Nestor foi o único a não o recriminar até o momento, Carlos procura um improvável apoio em seu olhar. Mas a face do pai não exprime solidariedade, somente reprovação.

Injustiças podem causar uma reviravolta momentânea no espírito. O temor se transforma em uma energia inebriante, em um ódio prazeroso e indescritível. Carlos, possuído por essa intensa onda de coragem, retira um envelope rosado do bolso da camisa, mira a expressão desolada da namorada e passa a narrar uma passagem que normalmente o constrangeria.

– Cris, certo dia eu estava indo visitá-la, até que a vendedora de um quiosque de plantas me parou e começou a tagarelar sobre as espécies à venda. Eu já estava voltando a andar quando ela mencionou o nome de uma flor. Eu senti um estalo. Aquele nome era exatamente o que eu sentia por você. Comprei uma, voltei a caminhar e um poema surgiu em minha cabeça. Pensei: “Vou fazer uma surpresa para a Cris.” Mas, ao avistar sua casa, comecei a me sentir meio ridículo. Acabei não entregando a flor, muito menos recitando os versos.

– Vamos parar com essa palhaçada e resolver logo o problema da moça! – irrita-se Nestor.

– Você não tem o direito de falar assim comigo! – vocifera Carlos. – Se quer respeito, também me respeite!

Nas proximidades dos Rigotti, aqueles que fingiam desatenção à cena encontram na reação exagerada do rapaz a oportunidade para assisti-la de frente. Até o delegado e o padre cessam a altercação que os absorvia completamente. Nestor, enrubescido e possesso, levanta sem pedir licença, retirando-se para dentro de casa.

– É melhor irmos também, vovó.

Com suavidade, Carlos segura um dos pulsos de Cris.

– Espere só mais um pouco – implora delicadamente. – Ainda não terminei...

– Solte-a, meu filho – aconselha dona Gertrudes.

Como a namorada permanece estática, ele continua:

– Hoje de manhã, finalmente botei os versos no papel – confessa e estende o envelope rosado. – Pegue.

Ela olha pensativa para o invólucro, quando sua avó a puxa.

– Vamos, Cris! Todos estão olhando – diz e vira-se em seguida para Márcia. – Desculpe, mas precisamos ir. Muito obrigada pelo convite. E, por favor, transmita nossos agradecimentos a Nestor.

Enquanto as convidadas caminham em direção ao portão, Márcia se levanta e determina secamente:

– Sente-se e converse um pouco com a menina. Irei lá dentro buscar seu pai.

Carlos não resiste à imposição materna. A onda de bravura que varreu seu espírito já se encontra distante e praticamente dissipada. Arrasado, devolve o envelope ao bolso. Ana, novamente a sós com ele, volta a falar.

– Quando irá registrá-lo?

– Registrar o quê? – balbucia, aturdido.

– Não se faça de bobo! Estou falando de nosso filho.

Ele permanece imóvel e calado, como se precisasse de mais algum tempo para retornar ao mundo real.

– E, então? Vai registrá-lo? – insiste ela.

– Não vou registrar ninguém! – grita Carlos, mudando repentinamente a expressão. – Tenho certeza de que esse menino não é meu filho!

– Ah, você tem certeza?

– Sim, tenho certeza! E exijo um teste de paternidade.

– Teste de quê? – espanta-se.

– De DNA, minha cara.

– Sobre essa análise, só sei que custa uma fortuna... – diz Ana, desconcertada, ainda que tentando manter a pose.

– Quanto ao dinheiro, não se preocupe. O importante é o grau de precisão do exame. Depois de comprovada minha inocência, vou processá-la por danos morais – afirma ele de forma imatura. – Você destruiu meu namoro com Cris, como podem atestar tantas testemunhas à nossa volta.

– Não acredito que alguém aqui se disponha a colaborar com sua pessoa no que quer que seja... – desdenha a moça.

– O teste só é feito na capital – informa Carlos rispidamente, ignorando a indireta desferida por Ana. – Marcarei nossa viagem assim que acertar os detalhes com meus pais.

– Pois não demore! Caso contrário, serei obrigada a tomar certas providências – ela intimida. – Até logo!

Padre Motta se dirige à mesa dos Rigotti e é esbarrado por Ana em sua saída frenética, despertando o bebê e fazendo-o chorar. O pároco sinaliza enfaticamente aos convidados curiosos, como se os mandasse tratar das próprias vidas.

– Olá, meu rapaz – cumprimenta. – Posso me juntar a você?

– Fique à vontade – concede Carlos.

Ele se ajeita em uma das cadeiras e inicia conversação.

– Ainda não o tinha visto hoje – afirma, causando espanto em seu interlocutor. – Por onde andava?

– Por aí – responde, deixando entrevisto um ar sarcástico.

– Essa postura cínica diante de tudo e de todos o torna antipático às pessoas, meu filho. Advirto-lhe que sou imune a esse tipo de comportamento. Minha missão é ajudar a quem precisa. E, no momento, imagino que necessite de algum apoio.

– Agradeço a preocupação. Mas não vejo como poderá me ajudar.

– Aconselhando-o. E, ao fazê-lo, estarei contribuindo para que um ser indefeso não fique desamparado.

– Não comece os sermões, padre. Sou inocente nessa história e provarei.

– Independentemente de ser inocente ou não, a situação pode ajudá--lo a amadurecer. Não desperdice a chance.

– A chance que tive para crescer foi o namoro com Cris. A situação criada por Ana só serviu para me tirar essa oportunidade.

– Quem é essa Ana com quem você se envolveu?

– Sei lá! Ela é moradora da cidade vizinha. O senhor nunca a viu?

– Não sei... Mal tive tempo de visualizar sua fisionomia.

– Com certeza é uma safada querendo aplicar o golpe do baú.

– Uma “safada” só consegue aplicar esse tipo de golpe em homens imprevidentes...

O almoço começa a ser servido sobre três grandes mesas, postadas em diferentes pontos do gramado. Alimentados até agora somente com salgadinhos e coquetéis, os convidados formam filas sem demora. Nestor retorna à festa amparado pela esposa. Cochichos despontam de todos os cantos, a maioria a comentar sobre os constantes infortúnios causados por Carlos ao pobre casal.

– Recuperou-se do susto, doutor? – pergunta padre Motta, tentando suavizar a seriedade da situação com uma sutil descontração no falar.

Nestor, no entanto, não se sensibiliza com o artifício bem-intencionado do velho amigo e persiste na postura dramática e silenciosa frente aos fatos.

– Onde está a moça? – quer saber Márcia, sentando-se ao mesmo tempo que o marido.

– Foi embora depois que impus um teste de DNA – diz Carlos.

– Não faça isso, rapaz – opina o padre. – Não condicione a felicidade de uma criatura de Deus à inexatidão das ciências
humanas, principalmente à de uma ciência incipiente. Você é inteligente e sabe o que fez... e quando fez. Assuma sua obrigação e registre a criança.

– Poupe sua saliva, padre. Não sou culpado e provarei. Mas, para isso, preciso ir à capital... – diz, dirigindo um olhar suplicante à mãe.

– Bem. Se você está tão convicto, seus pais certamente o ampararão – conjectura e força uma manifestação de Nestor.

– Sinto desapontá-lo, Motta, mas não ajudarei nessa empreitada. A análise em questão tem um custo altíssimo. Portanto, que fique a lição: é fácil praticar leviandades, porém muito difícil sanar suas consequências. Devido à minha posição nesta comunidade, não me resta escolha senão obrigar Carlos a assumir a criança.

Márcia, não convencida por completo da culpa do filho, intervém:

– Chega, Nestor! Se Carlos desejar, arcarei com as despesas e o acompanharei sem problemas até a capital.

O pediatra vê-se em meio a uma situação extremamente delicada. Grande parte de seu sucesso se deve à imagem de homem competente e honesto construída em torno de si. Porém, uma reputação pode ser abalada, ou até destruída, por julgamentos superficiais e não fundamentados, comuns quando quizilas íntimas tornam-se públicas. Se a comunidade associar o sobrenome Rigotti à ideia de desprezo aos valores familiares básicos, nenhuma explicação, por mais coerente que se apresente, conseguirá apagar tal conceito do imaginário popular. Portanto, o mais conveniente seria fazer o filho de Ana ser assumido sem contestação. Mas, para isso, Nestor precisaria da adesão da esposa. Com a mente abarrotada de preocupações, ele tenta convencê-la de que o melhor a fazer é não prestar auxílio a Carlos.

– Querida, compreenda, por favor: essa benevolência exagerada só prejudica o nosso filho. Eu concordo que, errando, aprende-se a caminhar. No entanto, encobrir os erros de alguém é o mesmo que atrofiar suas pernas. Já passou da hora de colocarmos Carlos no chão. Vamos agir de comum acordo e deixá-lo amadurecer.

– Eu sei que você só quer o bem de nosso filho, querido. Mas ele alega inocência, e o teste é a única maneira de provar. O que devo fazer? Simplesmente duvidar de sua palavra? Deixá-lo sem oportunidade de defesa? Sinto muito, mas isso supera as minhas forças.

Nestor conhece Márcia. Nada irá dissuadi-la. O melhor a fazer, então, é aceitar a decisão da esposa e tomar a frente do problema.

– Então, façamos assim: eu pesquisarei um local adequado na capital e marcarei o exame. Mas, um dia antes, irei sozinho até lá para sondar. Combinado?

Márcia compreende a imposição do marido, pois ele, na condição de médico, tem mesmo a obrigação de avaliar cuidadosamente a qualidade de um laboratório que oferece serviços recém-criados antes de lhe confiar uma vultosa soma em dinheiro. Ela dá um forte abraço em Nestor sob o olhar descontente de Carlos, que preferiria ver uma eventual intervenção paterna restrita ao âmbito financeiro. Diante do apaziguamento, padre Motta, faminto, pede licença para servir-se.