O Portal da Gália

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I

Amnésia

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Era uma manhã fria do primeiro dia de dezembro. O adolescente.estava deitado de costas, vestido com calça de brim azul, cinto preto, camisa de algodão estragada na altura do ombro esquerdo, um cachecol rodeando o pescoço e, nos pés, tênis surrados. Segurava um sobretudo pesado, de lã cinza. Pela janela do quarto podiam-se ver os esqueletos de árvores, sem folhas, gemendo e vergando-se ao contato do vento glacial que as açoitava rudemente. Ele ouviu passos que se aproximavam, vindos do corredor. Levantou-se lentamente, colocou o casaco e ficou esperando, sem demonstrar ansiedade.
Há dois dias ele fora deixado naquele centro hospitalar, quase inconsciente, com um corte profundo no ombro esquerdo. Nada encontraram em seus bolsos, exceto um pergaminho costurado no forro do casaco, sobre o qual havia uma série de símbolos cujo significado a polícia francesa não conseguira encontrar.

Quando os bombeiros, chamados por um transeunte, chegaram ao local onde o adolescente foi atacado, encontraram-no ferido, porém ainda consciente. Um pouco mais adiante havia uma mulher caída no chão, com lacerações na cabeça, mas em uma fração de segundos ela desapareceu sem que alguém pudesse dizer o que houve, ou se lembrasse com exatidão do ocorrido. O garoto foi levado para o hospital mais próximo.

— O que aconteceu? Onde está Mina? — perguntou ele ao acordar de um longo e profundo sono, na manhã seguinte.

— Bom dia, jovem — uma enfermeira, aproximando-se do leito, sorriu amável. — Trouxe-lhe algo. Você consegue se levantar?

— Pode me dizer onde estou? — sem compreender o que estava acontecendo, o adolescente apalpou o peito, tentando encontrar algo.

— No Centro Hospitalar Pitié La Salpêtrière — respondeu a mulher, sem prestar atenção ao paciente, esvaziando o conteúdo de uma ampola no tubo da seringa que tinha entre as mãos, segurando-a em seguida à altura dos olhos para verificar-lhe o conteúdo.

O paciente continuou passando a mão sobre o peito por alguns instantes. Em seguida, olhou à sua volta procurando alguma coisa sem se lembrar muito bem o que era: recordava-se apenas que deveria ter consigo um objeto.

— Os ferimentos foram superficiais — prosseguiu ela, após embeber, com a mão direita, um chumaço de algodão no álcool, enquanto segurava a seringa com a mão esquerda. — Um simples anestésico local foi o suficiente para o procedimento, mas agora é preciso tomar antibióticos, para não infeccionar as suturas.

— Não! — gritou o jovem. — Isso não! Pare! — ele fez um tal escarcéu que a agente de saúde, em pé a seu lado, desatou em uma sonora risada.

— Pare! Pare com isso! — continuou o adolescente, esbravejando, querendo impedir a injeção apontada em sua direção. Instintivamente, não por medo, mas por algum motivo importante, embora não soubesse exatamente qual, ele queria se desviar da agulha.

— Vamos lá. Nada de medo. É uma simples picada, e você não é mais um bebezinho. Levante-se! — com autoridade, enterrou a agulha onde havia mirado.

Enfraquecido, o doente não pôde se esquivar, e logo caiu novamente em profundo sono.

Ao acordar de novo, já quase no fim do dia, não se lembrava de nada. Recordava-se tão-somente de seu nome: Jean de Aurion.

A polícia que cuidava do caso percebera nele uma maneira peculiar de se expressar sem, entretanto, conseguir determinar de que região ele era. Muito mais peculiar foi que, no dia seguinte à sua entrada naquele hospital, as feridas estavam curadas e as cicatrizes desaparecidas quase por completo, o que deixou médicos e enfermeiros sem palavras.

Entretanto, apesar de sua surpreendente recuperação, o garoto parecia sonolento, cansado, desatento. Respondia atenciosamente às perguntas dos enfermeiros e policiais, quando se lembrava das respostas, depois se calava, tornando-se alheio a tudo. Algumas vezes conversava sobre um assunto qualquer, mas continuamente sentia náuseas e vertigens. Falara a um enfermeiro sobre seu mal-estar, mas este, anotando as informações no prontuário, não deu maior importância às reclamações.

Interrogado insistentemente pela polícia, ele respondeu mais uma vez, contrariado: — Meu nome é Jean, mas é só disso que me recordo. Nem sei onde estou ou o que faço aqui!

Seu francês era bom, coloquial, como o de qualquer jovem de sua idade.

Tinha cabelos castanhos, olhos azuis, e a pele, bronzeada demais para o rigoroso final de outono pelo qual atravessava a Europa, emprestava-lhe a aparência de quem voltava de uma longa temporada em algum país longínquo. Com cerca de l,60m, ele parecia ter 13 ou 14 anos. Não era o que se pode chamar de magro, visto estar até um pouco acima de seu peso. Não usava relógio, anel, cordão com um santinho ou qualquer pingente que pudessem identificá-lo.

— O jovem, provavelmente, foi esfaqueado ao ser assaltado por algum ladrão — arriscou um dos enfermeiros ao falar com os policiais Delarue e Michel, encarregados do caso, assim que chegaram no Centro Hospitalar.

— Quem o esfaqueou foi, com certeza, a mesma pessoa que feriu a mulher que o acompanhava! Segundo os bombeiros, e alguns transeuntes, havia uma mulher com a cabeça ferida. Disseram que ela parecia estar morta! O que eu penso é que ela devia estar ligeiramente machucada e fugiu num piscar de olhos, antes que a interrogassem — afirmou o inspetor Delarue, que ora alisava seus bigodes espessos e longos, ora coçava, como num tique nervoso, suas suíças, também longas e abundantes.

O inspetor, apesar de magro e não muito alto, mantinha-se altivo e um tanto circunspeto quando alguém se intrometia em seu trabalho. Acorrera ao chamado dos bombeiros e, irritado com a intervenção do enfermeiro, continuou em voz alta, em tom de reprovação, para que ele o ouvisse:

— Devia ser uma rapariga que assediava o rapazola quando foram atacados por ladrões. Ela fugiu. Clássico! A polícia chegou, ela quis evitar complicações! — parou de alisar seus bigodes e olhou maldoso para o rapaz.

Intrigado com o enigmático adolescente, o policial procurava solucionar o caso rapidamente, principalmente por se tratar de um menor de idade, tendo com isso de suportar a assistência social, o juizado de menores e todos os aborrecimentos advindos com tantas interferências. Além disso, havia o misterioso desaparecimento da mulher, e Delarue começou a tecer novas suposições para explicar seu sumiço.

Porém, focando novamente no menino, ele voltou a conjeturar:

— Com certeza é parisiense, mas seu nome não consta em nenhum liceu daqui — o inspetor falava baixinho, entre os dentes, num interminável solilóquio, enquanto andava pelos corredores do hospital acompanhado de Michel, inspetor auxiliar da delegacia em que trabalhavam. Este, que já se acostumara com os murmúrios de Delarue, escutava-o em silêncio, quando lembrou de algumas frases ditas pelo garoto. Arriscou um palpite:

— Às vezes ele parece um estrangeiro, pelo modo como se expressa. Fala coisas estranhas! — Como sempre, o inspetor não lhe deu ouvidos, prosseguindo seu irritante monólogo:

— Se ele não quer falar nada sobre si mesmo, deve ter algum motivo! Pode ser, realmente, perda de memória devido ao trauma sofrido, mas pode ser porque ele está escondendo alguma coisa — Delarue con-tinuou murmurando, ora gesticulando, ora coçando os bigodes, olhando direto diante de si, a ignorar completamente a presença de seu auxiliar.


* * *

Naquela manhã do começo de dezembro, quando ouviu passos vindos em direção ao quarto, Jean se levantou, abotoou o casaco e foi se encontrar com a pessoa que o levaria ao médico especialista. Uma avaliação de seu estado seria feita.

Enquanto o adolescente era conduzido para uma entrevista com o neurologista, o inspetor, forçado a deixar aos médicos a tarefa de cuidar do jovem, saiu do centro hospitalar acompanhado de seu assistente, de mau humor. Foi resmungando em voz baixa, enquanto caminhava:

— Não posso interrogar uma pessoa que não se lembra de nada! Ou finge não se lembrar! — justificava-se. — E, além do mais, tenho coisas mais urgentes e importantes para fazer do que interrogar meninos recalcitrantes.

— Também, pode ser tão-somente uma fuga mal sucedida. Ou simplesmente, o imberbe queria se divertir na noite parisiense! — disse o inspetor, raspando a garganta, continuando a ruminar suas ideias enquanto atravessavam o passeio, diante do hospital. — Não há indícios de que se drogue, o que justificaria seu estado de ânimo.

— Isso mesmo senhor! — concordou Michel, apesar de, como sempre, não ser ouvido.

— Pode ser que esteja realmente fingindo não se lembrar de nada para não se ver obrigado a falar sobre o assunto — tornou o inspetor, enquanto esfregava o botão de seu casaco e alargava as passadas.

— O doutor, o especialista, o neurologista ou coisa que o valha, vai examiná-lo e com certeza saberá se está mentindo ou não! — o auxiliar falou alto, apressando o passo para alcançar Delarue que se distanciara.

— Inspetor? — Michel voltou ao assunto que o afligia, algum tempo depois, quando já caminhavam na calçada do Boulevard Vincent Auriol. — Será que ele não é um imigrante ilegal? Seu sotaque, às vezes, é estranho!

— Imagine! Mas é claro que não! Viu como se chama? Além do mais, ele tem o biótipo de gente nossa. É parisiense, agora tenho certeza disso! — resmungou novamente o inspetor. — Bem. Vamos deixar os médicos com o trabalho deles e vamos embora fazer o nosso. Não é mesmo?

Andavam lado a lado e Delarue passou a comentar sobre as outras ocorrências dos últimos dias, desta vez com a voz baixa, quase inaudível.