Depois da Tempestade


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Pedro bebeu uma caneca de café acompanhada de batata-pão cozida, ainda fumegante. Em seguida foi sentar-se na pedra da costeira ao lado da praia, onde seus filhos, João e Francisco, estendiam as redes nos varais, aproveitando o sol daquele dia de um mês de setembro chuvoso.

Pedro residia na Praia do Marisco desde que nascera. Lá também residiram seus pais e lá nasceram sua mulher e seus filhos. Ainda estava cansado da noite sem dormir, cercando peixe ao largo da Ilha Rasa, bem aquém da Espada dos Anjos, cujo resultado foi aquele minguado de peixe. Mal daria para atender ao compromisso com o Tomé das Chagas, proprietário e mestre do saveiro Estrela do Mar, que comprava seu peixe aos sábados, a quantidade que tivesse, fruto do trabalho dele e de seus filhos durante a semana, compensado pelo pagamento na hora.

Sentado na pedra cheia de sulcos, desgastada pelas batidas das ondas desde que o Todo-Poderoso fez o mundo, começou a cismar: O que estará acontecendo pros peixes sumirem? Antes, no tempo de seu pai, com a pesca em canoas tocadas a remos, o peixe era tanto que dava pra voltar pra casa mais cedo, com tempo de tirar o sono da madrugada. O resto da semana era pra escalar o peixe, salgar e pôr a secar, pra vender no comércio da cidade. Peixe seco, também chamado bacalhau de pobre, apreciado até pelos endinheirados. Agora, saíam ele e os filhos, mais Chico e Xindoca, filhos de Catulina, sua irmã viúva, faziam o cerco com redes grandes, apoitavam espinhéis e o peixe que vinha era aquele um-de-nada. Há quanto tempo que não lhe sobrava um peixe gordo, de bom tamanho, pra salgar, secar e ensopar com abóbora madura, uma delícia que dava água na boca só em pensar. Muitos afirmavam que o sumiço dos peixes era culpa da usina nuclear, do outro lado da baía, que aquecia a água do mar e fazia os peixes fugirem à procura de águas frias. Outros culpavam a pesca de arrastão, que matava os peixes miúdos, imprensados nos sacos das redes, sem dar tempo pro crescimento. Era o que ele achava. Matando o peixe miúdo, ainda filhote, não podia haver peixe graúdo.

Estava naquela cisma quando ouviu a voz de João:

– Pai! Vai dormir na cama. A mãe já falou que a sua mania de dormir sentado na pedra vai acontecer de qualquer dia o senhor acordar dentro d’água.

– Não tô dormindo, tô pensando e de olho naquela garrafa que vem boiando em direção à praia. Por mais que o pessoal da ecologia peça e ameace, sempre aparece alguém jogando porcaria no mar.

Quando acabou de falar, uma onda subiu na praia, desceu e deixou a garrafa no seco.

– Vê pai? – falou João. – Uma beleza de garrafa. Deve ser de uísque importado, desses que custam muito dinheiro. Vou levar a garrafa pra Maria fazer uma jarra pra colocar flores, como ela gosta.

– Tá parecendo que tem um papel dentro dela, o que será? – perguntou Francisco.

– Na certa uma mensagem de algum pirata que se perdeu por estas bandas, um século atrás – brincou João.

– De pirata não é – interveio Pedro. – O mais certo é ser de algum moleque. Tira o papel pra ver.

João pegou a garrafa, olhou bem e disse:

– Isso é de bebida de gente rica, não há dúvida. A garrafa deve valer tanto ou mais que o líquido que tava dentro.

Em seguida desatarraxou a cápsula da boca da garrafa e foi em casa buscar o saca-rolha. Havia uma rolha bem apertada que ele sacou com alguma dificuldade. Com jeito, rolando a garrafa nas mãos e batendo no fundo, o papel enrolado e amarrado com uma tira de pano pôs uma parte para fora, que deu para puxá-lo.

– Desenrola o papel – disse Pedro. – Vê qual a besteira que tá escrita nele.

– Tem um pedido de socorro, pai – disse João. – E faz tempo que essa garrafa tá boiando por aí.

– Brincadeira de algum moleque, né? – voltou a falar Pedro.

– Sei não, pai – disse João. – O escrito tá com a data de 31 de dezembro do ano passado, já vai fazer ano.

– Deixa eu ver isso, sim? – falou Pedro, que já havia pulado da pedra para a praia, e continuou: – 31 de dezembro não foi quando deu aquele temporal que fez sumir uma lancha com três pessoas e nunca foi encontrada apesar de todas as buscas por um mês inteiro?

– É, o senhor lembrou bem – disse Francisco. – Lê o que tá escrito, João. Em voz alta pra gente ouvir.

– É um pedido de socorro. Escutem só: “Socorro! A lancha em que estávamos, eu e duas amigas, a tempestade jogou neste pedaço de ilha que fica além da Espada dos Anjos. Perdemos tudo. Estamos sem água e sem comida. A lancha espatifou-se, o combustível vazou e o rádio quebrou. Socorro! Tire-nos daqui!”

– Isso é brincadeira de mau gosto – voltou a falar Francisco. – Por fora da Espada dos Anjos não existe nenhuma ilha.

– Tem o Lajeado do Desterro – falou Pedro. – Na parte que aflorou nasceram uns coqueiros e gravatás. Se deram com o costado lá já morreram. Como iam sobreviver naquele ermo?

– Um lugar que ninguém ia se arriscar a ir, né?

– Pois é o que tô pensando fazer – falou Pedro. – Francisco, vê se o óleo do Guivira dá pra uma viagem de mais de seis horas.

– Sabe onde fica esse lugar? – indagou João. – Tá pensando mesmo em ir até lá?

– Tô. Você também tá, não tá?

– Vontade tô, mas não sei se isso vale o risco.

– Isso a gente só vai saber depois de ir, né?

– Nesse caso eu tenho que ir também – interveio Francisco, porque tenho carta de motorista e de arrais. – O motor do Guivira precisa atenção constante e quem sabe das manhas dele sou eu.

Os três entraram em casa, falaram da garrafa que chegara à praia e da disposição de irem até o Lajeado, para ver se lá existia alguém vivo ou os esqueletos deixados, que careciam serem sepultados.

Aprestaram o barco, Pedro colocou nele um cacho de bananas maduras, uma garrafa térmica com café, uma lata com farinha e um caldeirão com aipim cozido, que Antonia acabava de tirar do fogo.

– Pai? – perguntou João. – Tá levando tudo isso por quê? Tá com esperança de encontrar alguém com vida?

– Não se sabe, filho. O homem, às vezes, tem um poder de sobrevivência que causa admiração. Mas eu sei que a nossa viagem de ida e volta até lá vai demorar bastante pra gente perder o almoço. É preciso levar alguma coisa pra enganar o estômago, né?

Pedro e os filhos já haviam embarcado, quando Antonia chegou na praia e gritou:

– Vocês vão arriscar uma viagem naquela lonjura pra quê? Só pra deixar a gente com o coração apertado pelo medo?

– O que é isso, Antonia? – respondeu Pedro. – Você nunca foi de carregar desses medos, por que isso agora? Se tiver gente viva por lá deve tá no fim. O dever da gente manda que vá. Não fique arreliada, pois o tempo tá bom e antes do anoitecer a gente tá de volta. Se tiver gente viva, pelo tempo já gastaram a roupa e devem tá pelados, né? É bom levar alguma coisa pra eles se cobrirem, ao menos pra tapar as vergonhas.

Antonia não era de discutir com o marido. Entrou em casa e voltou com três cobertores ordinários.

– Taí – disse. – É o que posso arranjar. Vê se tem cuidado pra não deixarem eles perdidos, sim?

Francisco desceu para a casa de máquina, deu partida no motor e o Guivira tomou o rumo do mar de fora. Com o tempo firme, sem vento, o sol reluzindo no mar sereno, os três se juntaram na casa de leme para conversar sobre o destino deles.